Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

My Photo
Name:
Location: Lisboa, Portugal

Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Friday, March 30, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (7)

A meio das suas vidas tropeçaram um no outro. Pensaram que foi sem querer mas já tinham combinado o encontro noutra dimensão.

Há pessoas que conhecemos desde crianças e que nos acompanham durante quase toda a nossa vida. Existem outras que só aparecem em determinados momentos por determinados períodos. Algumas nunca mais as vimos. Outras, vamos encontrando por ai. São as fadas e as bruxas que nos influenciam nos avanços e nos recuos da nossa espiritualidade.

Eles pensavam que se tinham cruzado por acaso porque a alma, no dizer de Platão, quando cai no corpo, esquece-se, para pensar que pode viver a sua livre iniciativa.
Ele era o senhor do vento, que às vezes há, outras vezes não. Ela era a dona das nuvens sempre envolta numa névoa que lhe tapava os sentidos e não a deixavam ver a realidade.
Não tinham tempo um para o outro porque não faziam parte do espaço quotidiano de cada um. Ou não tinham espaço porque não tinham tempo.

Tropeçaram um dia e continuavam a tropeçar de vez em quando com segundos de partilha em séculos. Mas só quando havia vento. Mas só quando havia nuvens.
da Leonor

Friday, March 23, 2007

Leonor no Inverno do seu descontentamento

De vez em quando tenho a Leonor a pedir-me para escrever qualquer coisa para manter a porta do blog aberta semanalmente. E cada vez que ela o faz instala-se-me crises de sintaxe. A mulher das palavras é ela. A mulher que vive em dimensões paralelas e simultâneas através de sensações transmitidas pelas metáforas é ela.

Não precisas de ficar assim, diz-me. Faz o que todos fazem quando escrevem: encosta a caneta ao papel que ela desliza sozinha. Mas ela mente. Escrever não e assim tão fácil. Escrever nunca é fácil. Eu vejo-a quando ela escreve. Ela começa, ela pára, recomeça, apaga, não fala, lê o texto, morde os lábios, emenda uma frase, entrelaça os dedos…
Os seus textos de improviso começam a ser pensados com antecedência. Paradoxalmente, brinca com o sentido da língua por respeito a quem a lê.

Penso como começar.
“Leonor pediu-me que fosse eu, esta semana a escrever para os seus amigos do blog”

Uma dúvida assalta-me.
Eles conhecem-me? Pergunto-lhe.
Conhecem-te de gingeira, responde-me.
Tens a certeza? Insisto.
Oh! Se tenho. Descansa-me.

Continuo.
“Paradoxalmente, no inicio da Primavera, Leonor vive sempre o “Inverno do seu descontentamento”.
da Leonor

Saturday, March 17, 2007

Ainda acerca das coisas de ler

Fui durante mais ou menos uma década a única neta e a única sobrinha do lado materno. Nunca tive irmãos e, por muito curioso que seja, também nunca senti a falta de nenhum.

Desde criança até ser adolescente, passei as férias grandes da escola, que naquela altura eram mesmo grandes, em casa das avós, no Algarve. Ora na avó materna, na cidade, junto à costa, aproveitando a praia, ora na avó paterna, no campo, comendo figos da árvore.

Sem miúdos para brincar, preenchia a solidão com a imaginação tirada dos livros que lia. Tinha o dom de ver as páginas tridimensionais e por elas conheci muita gente e existi em muitos lugares. Mas o facto de ser sozinha não me tornava apática. Do nada, eu tinha de sobreviver ao marasmo dos dias e, do nada, descobri um dia um tesouro escondido.

A minha tia, irmã da minha mãe, mais velha que eu doze anos, na altura, sócia recente do círculo de leitores, comprava livros, que devido a uma censura das artes bastante activa em Portugal, eram considerados como proibidas pela moral neles contidos. Depois do 25 de Abril, creio que o estado de coisas amenizou nos círculos literários e editoriais mas não nas cabeças da minha avó e da minha mãe.

Descobri que a minha tia comprava determinados livros como o “Crime do padre Amaro”, o “Primo Basílio”, o “Inverno do nosso descontentamento” e “Teresa Batista cansada de guerra”… no fundo mais fundo do guarda fatos. De repente, eu que nunca consegui dormir à tarde mesmo mordida pela mosca tsé tsé comecei a fazer pausas à espanhola depois do almoço. Vou dormir avó. Sim filha vai. E assaltava o guarda fatos.

Contudo, era demasiado miúda para perceber certas conotações politicas, sociais e afectivas. Mas alguma coisa ficava. Virei-me para a ficção científica. Um livro extremamente confuso chamado UBIK contava a historia de um spray milagroso, ubik, que tinha a capacidade de ressuscitar quem já tinha morrido três vezes durante cerca de meia hora, ora para matar saudades ora para resolver alguma trama.

Confesso que pouco percebi do livro. Porém, cerca de dez anos mais tarde, perante uma birra de um professor de filosofia que me dizia que não era ubíquo eu percebi a palavra ubiquidade e percebi então as características do spray.

O processo cognitivo é uma coisa formidável. Remete para sítios recônditos que julgamos já apagados problemas não resolvidos para mais tarde, não importa o tempo, fazer a associação que faltava. E faz. Em psicologia creio que se chama input, Arquimedes chamou-lhe Eureka.

Os livros dizem-nos as realidades através das portas dos sonhos. São os grandes culpados por nos fazerem acreditar em príncipes e em princesas. Mas como viver sem eles?
da Leonor

Friday, March 09, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (6)

Nesse sábado ela acordou um pouco mais tarde. E ainda por cima decidiu fazer um pouco de ronha na cama até que, por fim, lá se levantou, muito devagarinho e se dirigiu para o duche. O gel de aroma a limão acordou-a.

O que vestir?. Jeans. E uma camisola. Uma qualquer. Tanto faz. Penteou o cabelo molhado e deixou secar ao ar.
Quase meio dia. Não tinha fome. Mas ainda viu o que havia de fast food no congelador. Bacalhau com natas e uma lasanha. Não lhe apetecia nem um nem outro. Bebeu só um copo de leite.

Sentou-se ao computador. Tinha publicado uma história no seu blog na véspera. Àquela hora já devia ter comentários. Os raios de sol atravessavam as paredes brancas do escritório, aquecendo os móveis. Miró estava todo iluminado.
Depois de ler os comentários abriu a janela para apreciar melhor o dia bonito que estava na rua.
Voltou ao computador. Ia a começar a responder aos seus visitantes de blog. Clicou no primeiro nome conhecido de cara desconhecida. Há dois anos que trocavam comentários mas nunca se tinham visto.
A luminosidade do sol não a deixava concentrar-se. Havia uma angústia que não sabia explicar. Uma inquietação….

Vestiu o casaco e foi para a biblioteca que se enchia de gente com alguma facilidade. Velhotes iam lá ler os periódicos sem pagar. Os computadores estavam todos ocupados.
Começou a tirar livros das prateleiras e a juntá-los debaixo do braço. Alguém esbarrou nela por trás. Os livros que ela segurava caíram ao chão. Os dois baixaram-se, precipitando-se para apanhá-los.

- Andava à procura deste. – disse ele – onde estava?
- Ali. Se quiser pode ficar com ele. – disse ela
- “Boas são as ideias que têm o mesmo grau de confusão que as minhas” - disse ele
- Proust.- e ela riu-se.

E ficaram a falar de Proust e da sua madalena a tarde toda. Despediram-se. E ela regressou a casa contente por ter conseguido aproveitar os raios de sol que lhe invadiam o escritório de manha. No caminho rememorava palavras, olhares, trejeitos e de repente lembrou-se que não sabia o nome dele.
da Leonor

Friday, March 02, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (5)

Depois de resolverem as questões pendentes, uma vez por semana, ficavam sempre a conversar um pouco, nunca mais de meia hora até ser tempo de cada um ir às suas vidas particulares.

O tema das conversas pouco interessava mas versava sempre alguma coisa interessante para os dois: algum livro que tinham lido, algum filme que tinham visto, alguma coisa que tinham feito, alguma coisa que cada um planeava fazer. Mas dos sentimentos que cada um sentia pelo outro nunca se dizia nada.

Ele falava mais. Ela ouvia mais. Mas a partilha existia. A troca não se perdia. Depois era o arrumar dos papéis nas pastas mas sempre com a conversa continuada, interrompida por algumas trivialidades. Era a comunhão do método, de afinidades. Por vezes, nada se impõe. Tudo existe num fluir espontâneo.

Tempo de acabar ali e de começar além. Para trás, as paredes imaculadamente brancas do escritório, o soalho de taco castanho cor de mel cuidadosamente encerado, o quadro de uma paisagem desmaiada na baguete de metal dourado - uma ponte sobre um rio - a secretaria desarrumada preguiçosamente com bolas de papel inutilizado, acerto de ideias de uma semana. No fim a sensação de que algo corria bem sem contratempos, até que outra semana viesse na esperança de transformar aquela hora e pouco na eternidade.
da Leonor