Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

My Photo
Name:
Location: Lisboa, Portugal

Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Friday, January 26, 2007

Autonomia

Desenvolver a autonomia do aluno é um dos objectivos principais a atingir no desenvolvimento sócio afectivo. Mas se há alunos que precisam de ser estimulados neste aspecto há outros que são autónomos demais.

No outro dia, o Ricardo recusava-se a copiar a primeira quadra de um texto por considerar que aquela não se integrava no contexto das restantes. Tratava-se de uma lenga lenga onde o primeiro verso é sempre repetido.

Eu estava perplexa com tanto descaramento.
Ouça lá, disse-lhe eu, foi você que escreveu esse texto?
Não.
Tem autor?
Tem.
Então só tem é de respeitar o autor.
Mas professora, veja bem….

Ele não desistia.

Hoje o Ricardo pegou na tampa branca de uma caneta de feltro, transformando-a num cigarro. Pegava no imaginário cigarro de várias maneiras, simulando a passa e expelindo o fumo em argolinhas. Esteve a fumar durante a cópia toda. Cheguei junto dele e gritei-lhe:

Apague o cigarro imediatamente. Está a encher-me a sala desse fumo pestilento.

Ele pegou na tampa e colocou-a atrás da orelha. Agora o Ricardo era um merceeiro.
da leonor

Friday, January 19, 2007

Escrevo


Escrevo.
Doença nos dedos ou na língua, sei lá.
Escrevo com prazer uma história, uma frase ou uma palavra.
Mas será que o prazer da minha escrita garante o prazer do meu leitor? Claro que não.
Esse leitor procuro-o sem saber onde ele está. Crio um espaço de jogo imprevisivel entre a minha escrita e a leitura do outro.
da Leonor

Friday, January 12, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (1)


Quem ele esperava não tinha aparecido. Ao fim de duas horas decidiu que não esperaria mais. Abriu o porta bagagens, olhou para a cesta de verga e pensou em deitá-la fora com tudo o que estava no seu interior: uma garrafa de bom champanhe (que provavelmente ela não apreciaria a diferença por lhe ser pueril), dois flutes e umas tostas minúsculas próprias para acompanhar o caviar. Ele tinha comprado mesmo caviar.

Subitamente, alguém, ofegante se colocava ao seu lado, perguntando à queima roupa se ele sabia onde ficava uma determinada rua. Ele olhou para o papel e depois para ela.

- Está com muita pressa? – perguntou ele. Ela não respondeu. Não percebeu a pergunta.

- Está com muita pressa? – repetiu ele.

- Porque pergunta? – Ela continuava sem entender. Só pretendia a informação. Se ele não sabia procurava noutro lado.

- Tenho champanhe e caviar nesta cesta. Não quer fazer um pic nic naquele banco ali? – E apontou para um banco em frente a um chafariz no meio de uma praça muito pequena, ajardinada, que despontava no meio da cidade como se fosse um oásis no meio do deserto. Ela hesitava. Estaria a sonhar? Aquilo era mais um truque do seu imaginário. Decidiu aceitar a constância da surpresa na diversidade dos dias. Afinal não estava com pressa.
da Leonor

Friday, January 05, 2007

A Tragédia

Ora o tempo me falta ora o tempo me sobra, aquele tempo que não existe e que por isso oscila consoante o meu estado de espírito do muito querer fazer e do nada querer.
Nestes dias sobrou-me uma hora de tempo. Entro na biblioteca. Escolho um corredor. Percorro as prateleiras com os olhos à procura de um título, de um autor que se transforme no título, no autor. Tropeço em Édipo Rei. Não resisto. É o eterno fascínio pela tragédia.

As personagens de alta estirpe que, estoicamente, suportam os cinco passos da tragédia que culminam na catástrofe, mostrando ao mais comum dos mortais - eu - que se a desgraça lhes acontece, o problema dele, do mais comum dos mortais - eu - não vale nada.
Na tragédia começa a teoria da catarse. Os desafios ao destino (hybris) e o “sofrimento por eles sofrido” (pathos) – com perdão do pleonasmo – purificam a alma de quem os assiste.

Segundo Agostinho da Silva, Édipo “rema contra a maré a favor da maré”: ao fugir da sentença do oráculo que o condenava cruelmente a matar o pai e a desposar a mãe ele irá matar o pai e desposar a mãe sem o saber e sem o desejar, particularmente, numa sociedade que abominava tais casamentos.

Olho o relógio. Arrumo o livro. Toda a minha angústia de ocupar um tempo com nada querer fazer se dissipou perante a tragédia de Édipo. Brevemente comprarei um exemplar para andar sempre de alma lavada com ele no bolso.
da Leonor