Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Saturday, January 28, 2006

Lá no alto com as estrelas

Gosto de entrar cedo na escola. De fazer café e encher a sala dos professores com aquele aroma delicioso. Gota a gota , o líquido escuro cai no jarro de vidro, antecipando o prazer de uma bebida quentinha, a primeira de muitas que aquecerão mais um dia frio de Inverno. Encho duas chávenas de café. Uma para mim e outra para a Amélia.

-Será que a Isabel já chegou? – pergunto-lhe.

-Não sei. Ainda não a vi passar para cima. – responde a minha colega.

Bebo o café e dirijo-me ao primeiro andar. A porta da sala está aberta e espreito para dentro. Isabel ainda não chegou.

Toca a campainha para a entrada e sou apanhada na avalanche dos miúdos dela a subirem as escadas. Páro. Sofro alguns encontrões. Apanho uma aberta e arrisco o avanço. O meu pé falha um degrau e vrummmmmmm, aí vou eu pela escada abaixo. O meu telemóvel, pensou que era uma nova brincadeira e, afoito, saltou do meu bolso e desceu mais escadas do que eu. A parede travou o meu voo na parte superior do meu crânio.

Estendida no chão tive a visão de mais dois planetas na nossa galáxia. E contei à vontade, num ápice de segundos, mais de trezentas estrelas. Azuis. Todas novas. Vendo-me prostrada no chão, rapidamente os miúdos foram procurar ajuda.

Entrei na sala quase de rastos. Percebi Freinet. Quando, ferido por estilhaços de guerra, não consegue exercer a profissão de professor como antes, e descobre o método do aprender, fazendo, ou seja, põe os miúdos a fazerem eles próprios o trabalho que ele não consegue fazer sem se cansar.

Lembrando o grande pedagogo… fiz o mesmo. Joana é a mais expedita. Ela dá a aula. Já me viu muitas vezes a ler o texto, a mandar ler o texto, a orientar a resposta completa. Mais a mais, quer ser professora. Imita-me nos pequenos pormenores, lembrando-me que tenho de corrigir alguns tiques.

No almoço com as minhas colegas, a Teresa conta-me que os pequeninos dela de três anos disseram-lhe que uma professora caiu nas escadas. Que professora? A professora de cima, disseram alguns. Não. Foi a professora cá debaixo, disseram outros, porque vinha a descer as escadas e ficou virada para baixo.

Pequenos na altura mas grandes na lógica.


da Leonor

Saturday, January 21, 2006

Os Versos têm Segredos


Olho para a minha planificação mensal. Entre os vários conteúdos para dar neste mês constam as rimas. Pego no meu dossier de lombada larga, cheio de textos arrumados por temas, religiosamente bem conservado e aumentado ao longo dos anos da minha docência e, que este ano, em vez de ir ao meu ombro, no saco azul habitual a espreitar o céu lisboeta, foi num cesto para roupa engomada de plástico amarelo às escuras de um porta bagagens parar ao Minho.

Não que ache os manuais desprovidos de senso. Organizados segundo o programa educativo ajudam-me a segui-lo sem me perder. Mas como não existe o manual perfeito, e entenda-se aqui o conceito de perfeição como a minha sabedora aprovação, faço eu o meu manual. Todos os professores têm um só deles.

Acabados de chegar à sala, os miúdos falam enquanto tiram cadernos e estojos das mochilas. Vão-se acalmando à medida que vão passando para o caderno a data e o plano de aula. O plano dá-lhes uma perspectiva do que farão naquele dia pelo que terão de organizar o seu ritmo em função da tarefa a cumprir. Os mais curiosos querem saber o significado dos conteúdos antes do tempo.

- Professora, o que são rimas?

Ainda estou de costas para eles a escrever as últimas palavras no quadro mas reconheço a voz do André.

Faço que não ouço. Não é por ai que quero começar. No fim, saberão o que são rimas e eu não precisei de explanar a teoria. Farão o link sozinhos da prática à representação racional.

De pé, encostada ao quadro, de frente para os alunos, leio o texto de Carlos Pinhão.

“Gil estava apaixonado pela sua colega Matilde. Fazia-lhe versos em que paixão rima com coração e amor rima com flor e às vezes com dor porque o Gil pensava que a Matilde não gostava dele.”

Riem e olham uns para os outros, camuflando algo que fazem há já algum tempo: versos que falam de paixonetas. Só que não rimavam e os do Gil são mais engraçados porque rimam e a rima é como se fosse uma espécie de música que damos às frases.

- Ok. Vamos lá imaginar como seriam os versos do Gil para a Matilde.

Todos estão numa agitação latente da imaginação. O entusiasmo estala. Vou lá para trás, reduzindo ao máximo a minha presença. Gritam-se versos. Repetem-se versos. Escrevo o que dizem, e de vez em quando, intrometo-me:

- Não, não, a palavra final desse verso tem de rimar com a palavra final do verso de cima. Arranjem outra.

Os versos ficam feitos. Os versos ilustram-se. E todos sabem que rimas são palavras que têm na sua terminação a mesma conformidade de sons.
Para concluir lanço para o ar que os versos têm segredos. que às vezes rimam mas outras vezes não, mas que são sempre poesia. (como os de Alberto Caeiro que nunca rimam mas que comportam em cada palavra um segredo)


(Será que ouviram?)


da Leonor

Saturday, January 14, 2006

Poltergeist

Ana pergunta a Leonor se esta precisa de ajuda nalguma tarefa doméstica porque a Leonor só gosta de escrever, de ler…e aquele ar enlevado, fixo numa dimensão constante de ficção leva a amiga a prestar-lhe serviços, os comezinhos, triviais, enfadonhos que não gosta de fazer.

Ana vai para a cozinha. Abre o frigorifico e vê que legumes há para fazer uma sopa. Escolhe duas cenouras e quatro folhas de couve lombarda. Junta tomate.

-Não há feijão? – grita da cozinha.
-Na despensa. – responde a Leonor.

Arruma melhor as mercearias na despensa que Leonor, na véspera, colocou caoticamente nas prateleiras. Lava a louça à mão. Enxagua o último prato e repara que a pia ainda não escoou a água toda. Procura um desentupidor no armário. Mas o chão já está todo alagado. Logo chama a brigada de salvamento.

- VP! VEM CÁ DEPRESSA!

VP, ainda demora a responder ao apelo. Qual dom Quixote, aparece na cozinha sem o cavalo e sem a lança. Leonor corre atrás e desesperada diz "oh não" e imediatamente foge. Ana e VP arregaçam mangas e calças.

- Tira tudo do armário. – diz ele.

Ana tira para um canto da cozinha uma catrefada de detergentes para a louça, para o chão, para os vidros lisos, para vidros foscos, para as gorduras mais leves, para as gorduras mais incrustadas.

- Já está. - diz ela.

- Agora tira a porta do armário. – continua ele.

Ana abespinha-se perante tanta ordem impávida e serena. Leonor, ligeiramente longe, ligeiramente perto lembrou-se do tio Podge do romance “Três homens num bote” de Jerome K. Jerome, . que para pregar um quadro numa parede punha a família toda em movimento: um ia buscar o escadote, outro o prego, outro o martelo e o tio Podge só martelava.

- E tu fazes o quê? – perguntou Ana de nariz empinado e mãos na cintura numa atitude desafiadora, opondo-se à totalidade da tarefa.

- Eu desentupo o cano.

Ana, espera com um pé numa indecifrável desconfiança o desenrolar dos acontecimentos. Leonor vagueando por ali, ligeiramente perto , ligeiramente longe roi as unhas.

Um arame mágico, comprido, com uma manivela na ponta foi entrando, rodando lentamente pelo cano abaixo.

- Ah, isto parece que já encontrou qualquer coisa. Não há p’ra aí um desentupidor de canos?

- Não. Já estive a ver. Mas vejo aqui ácido nítrico.

- Deitamos um bocado.

- Vocês vão matar os peixes! – diz a Leonor.

- Palavra d’honra. – exclama o VP apanhado no meio de um dilema ecológico.

- Tens de escolher. – diz a Ana – ou os peixes ou a cozinha alagada.

- Deita só um bocadinho.

- Claro, a quantidade do produto diminui a tua culpa. Então e os detergentes que usas na roupa e na louça, e o shampoo e o óleo do peixe que deitas fora…!!??

- Deita só um bocadinho.

Deitou-se um bocadinho de ácido no cano. Um minuto de silêncio pela morte dos peixes do Tejo e de todos os peixes do mundo foi feito pelas duas naquele momento. O silêncio do VP tinha um propósito mais imanente: o sucesso do frete. De repente, do cano veio um som cavernoso que parecia vindo do fundo das catacumbas de um cemitério, deixando-os a todos petrificados por um espanto de olhos esbugalhados e garganta afónica.

Passada a borra cromática e fétida beberam Porto pela garrafa para esquecerem lembranças de Poltergeist. Ana ria e Leonor já vagueava por ali ligeiramente perto.
Lá, nos romances que lia e nas ficções que escrevia nunca havia compras para arrumar, sopas para fazer e muito menos canos entupidos.

Da Leonor

Saturday, January 07, 2006

Quero contar uma coisa


A corrida à casa de banho começa a meio da manhã, indo até ao toque da saída, a meio da tarde. Existe um círculo de cartolina verde de um lado e vermelho do outro junto à porta que controla as saídas da sala, pois determinámos que só seria permitido lá fora um aluno de cada vez. E embora os miúdos já saibam que eu deixo sempre ir à casa de banho vêm sempre pedir-me autorização.

Jéssica, durante a realização de uma cópia, levanta-se e aproxima-se de mim que, sentada na minha secretária, dava uma vista de olhos na apresentação de alguns cadernos já terminados, sob o olhar angustiante dos donos aos movimentos da minha esferográfica vermelha.

A escassa meia hora de terminar a aula, com tantos pedidos já feitos com as respectivas autorizações já dadas, nem deixo a Jéssica falar e respondo : vai num pé e volta no outro.

Porém, o assunto era outro. Jéssica manteve-se de pé na minha frente. Olhei para ela. repeti: podes ir.

- Professora… quero contar uma coisa. - disse a Jéssica baixinho, tímida como só ela é.

A curiosidade já me tinha franzido a testa. A experiência induziu-me a esperar uma queixa muito subtil de algum colega.

- Professora… a minha vaca ontem teve um tourinho.

Nunca adivinharia o que ela tinha para me dizer. Quando recuperei do pasmo consegui dizer:

- Que lindo Jéssica. Conta como foi.

E os papéis inverteram-se. Daquela vez foi a professora que, encantada pela magia de uma história que não era de fadas, ouviu a aluna.



da Leonor

Sunday, January 01, 2006

Não derrames o tinteiro


O primeiro dia do ano reporta-me sempre a uma conversa amena entre duas personagens, a Mafalda e a Liberdade, do cartonista argentino Quino.

A propósito do ano que começa a Liberdade diz que o dia 1 de Janeiro é como a primeira folha de uma agenda novinha a estrear ao que a Mafalda responde “cuidado, não derrames o tinteiro”.

O conjunto de práticas consagradas pelas normas determinadas pelas ocasiões a que chamamos rituais, dizem-me muito pouco, precisamente pela obrigatoriedade do individuo à sociedade. Cumpro-os pelo sentido de ética que a comunidade me incutiu desde que se iniciou o meu processo de socialização. Contudo, a minha moral, essa minha vontade que determina a minha conduta, escondida a maior parte das vezes por se revelar contra princípios universais, leva-me a formar os meus próprios rituais.

E assim… depois de beber o champanhe e mastigar as passas, deito-me e durmo, resignando-me pacificamente a um dever cumprido. Depois, no dia seguinte, levanto-me cedo e vou ver o mar. Por vezes está vento. Por vezes o céu está nublado. Outras vezes o sol aquece o passeio no paredão e nem parece Inverno. Observo as gaivotas juntas na areia, quietas, todas viradas só para um lado, indiferentes à passagem dos dias e ao ritual dos festejos. Observo as ondas do mar no seu vai vem constante, ritmado, rebentando em bolhas brancas à beira-mar.
Leonor, se tu fores à praia... se tu fores ver o mar... cuidado, Leonor… não derrames o tinteiro.
da Leonor