Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Saturday, October 28, 2006

Lugar Cativo

De um modo geral, as minhas primeiras vezes caracterizam-se pela experiência do pensado “se calhar é por aqui”. Contudo, nunca calha por ali. É sempre pelo outro lado.
E eu sabendo, pela experiência repetida, poderia enganar o jogo: se eu penso que é por aqui e sabendo sempre que me engano então vou por ali. No entanto, quando assim faço, o caminho certo continua sempre a ser o outro. Decididamente, encontro-me num beco sem saída onde forças poderosas se divertem comigo.

Sou fiel ao lugar quando o encontro. Ao lugar no barco, no comboio, na camioneta, no cinema, no restaurante. Toda a gente é. Depois de uma vez ocupado ele torna-se um direito consuetudinário.

Entro no comboio. Por norma, nunca na primeira ou na última carruagem. São as que amassam mais quando chocam com algo estranho na linha, outro comboio por exemplo. Escolho um banco ao canto da carruagem ainda vazia, sentando-me no canto do banco, à janela. Fecho os olhos para aproveitar o resto de sono arrancado da cama por um despertador de toque cruel há três quartos de hora.

Subitamente, uma onda de energia invade a pequena carruagem, ficando quase cheia. Teenagers de ambos os sexos fazem a sua aparição. Riem, cantam… oito horas da manhã… eu também fui assim?
Alguns lêem o jornal, o Destak ou o Metro, distribuído gratuitamente à saída do barco. Prendem-se nalgumas leituras. Comentam-nas em alto e bom som. Afinal os jovens lêem os jornais. Quando são dados. O horóscopo nunca falha. A leitura do horóscopo significa que todo o resto impresso naquelas folhas fedorentas já não tem interesse. E depois do horóscopo dos Capricórnios, caranguejos e virgens surge a brincadeira do jornal voador. O canudo de papel transforma-se numa bola de ténis entre várias raquetes. Bate em mim. Silêncio. O altifalante anuncia a minha estação. Levanto-me e coloco o jornal debaixo do braço. A porta abre-se e num relance atiro o jornal para o meio dos miúdos. Palmas e gritos de satisfação.

No outro dia vejo a carruagem ocupada. Vêem-me a passar. Batem na janela. Sorrio e sigo para outra carruagem já meio cheia. Há um banco por ocupar lá ao canto. Sento-me ao canto do banco, á janela.
da Leonor

Saturday, October 21, 2006

A digestão dos conflitos

Depois do intervalo do almoço, há sempre um conflito para resolver na sala de aula. Alguém bateu sempre em alguém.
Fazemos quinze minutos de tribunal com a particularidade de eu ser juiz, advogado de defesa e de acusação e júri.
Ouvimos a versão dos implicados um de cada vez. Os ânimos exaltam-se mas o meu feitio de Luís XIV imediatamente devolve o silêncio à sala. A queixa continua.

O Gonçalo, a Raquel e a Catarina, relativamente encorpados para os seus oito anos, levaram uma surra do Ricardo, um franguinho com metade do tamanho deles.
O quê? Perguntei eu, desconfiada dos poderes kriptoníticos do Ricardo.

Coloquei os possíveis culpados em fila junto ao quadro para comparar tamanhos e forças e brincar um pouco com os agredidos e o agressor. O normal é eu dizer a quem alisa o pêlo dos colegas: “para a outra vez mete-te com gente do teu tamanho”. Porém, desta vez, a ameaça ou o conselho não se aplicava. O ricardo era visivelmente mais pequeno.

Ao toque de saída foram saindo um a um, como é costume, pelo comportamento que tiveram nesse dia. O Ricardo ficou para o fim. Parecendo indiferente ao castigo disse: Já sei que sou o último.

Todos saíram.

- Agora diga-me! Quer andar à tareia comigo? – perguntei-lhe a olhá-lo bem nos olhos.
- Não.
- Porquê?
- Porque não.
- Você – quando estou aborrecida trato-os por você ou por senhor – sabe que não, sim, talvez e mais ou menos, para mim não é resposta. Por isso, resposta completa. “Eu não quero andar à tareia com a professora porque…
- .. fico a perder.
- Ah! Pois fica! Dou-lhe duas voltinhas no ar e a seguir estatelo-o no chão. (Isto porque ele não era do meu tamanho). Agora desapareça da minha vista até segunda feira. – ordenei
- Bom fim de semana professora.
da Leonor

Saturday, October 14, 2006

“Patiu-che” as patas


Quando chego a uma turma no inicio do ano lectivo ainda trago na cabeça os miúdos do ano que acabou há dois meses atrás. Cruelmente, os dias, um a um, substituem os miúdos anteriores pelos novos. Porém, alguns ficarão para sempre na minha recordação, por frases, por gestos feitos, pelos seus temperamentos mais diferenciados que a massa homogénea da turma.

Apanhei no meu primeiro ano de trabalho, numa escola no Alto de São João, em Lisboa, um 2º ano excelente que vinha muito bem preparado do 1º ano pela colega que me antecedeu. Na altura não tive essa noção. Hoje tenho-a devido às diferentes turmas que já leccionei.

Lembro-me de quase todos eles mas, particularmente, da Vera. A Vera era uma menina tímida, muito feminina, pequenina, magrinha, vaidosa mas discreta, sempre bem vestida. Tinha uns cabelos castanhos compridos lisos que lhe davam pela cintura e a sua franja estava sempre cuidadosamente bem aparada junto às sobrancelhas.

Sentava-se na mesa em frente à minha secretária e tinha uma deficiência na fala a que os professores na sua gíria designam por “sopinha de massa”. A Vera não almoçava na cantina da escola. Almoçava em casa. E todos os dias, quando voltava do almoço depositava em cima da minha secretária uma flor. Papoilas, margaridas, amores perfeitos… sem nunca dizer nada. Onde ela apanhava as flores não sei. Nunca lhe perguntei. Vinha sempre acompanhada de um cãozinho de peluche, outrora branco, preso por uma trela, arrastando-o pelo chão, à semelhança de um cão que tinha rodas e ladrava e que era grande moda na altura.

Antes de sentar-se, a Vera colocava a flor na minha secretária e, logo de seguida, ajeitava o cão muito quietinho no chão junto à perna da mesa, prendendo a trela na mesa com o estojo dos lápis não fosse o brinquedo fugir, enquanto ela se concentrava na aula.

Eu não permito brinquedos na aula, mas como proibir o cãozinho da Vera que se portava tão bem perante o seu olhar atento e doce? Um dia, a Vera deposita a flor, como sempre, no mesmo sítio mas não traz o cão.

- O cão?! – perguntei-lhe admirada.
- Patiu- che as patas. – respondeu ela muito consciente de que nada dura para sempre, sentando-se para continuar a aula.

Pudera! Ainda muito resistiu o brinquedo a tamanhos trambolhões.



Da Leonor

Friday, October 06, 2006

Um pouco de Poção Mágica.

Encontro-me no 6º piso de um edifício de sete andares. À volta desse edifício existem mais blocos de cimento consideravelmente mais baixos e de uma arquitectura diferente, todos no interior de um recinto fechado pertencente à mesma instituição.

Foi por um triz que cheguei a tempo de retirar a senha para tratar de uns papéis. Mais pessoas estavam na minha frente e demorei algum tempo entre secretarias, preenchimento de formulários e tesourarias.

Por fim mandaram-me ao 6º piso, mais tarde iria até ao 7º. Quando começo por tratar de um assunto no primeiro andar e acabo no último lembro-me sempre de um livro que eu li algumas vezes, por volta dos quinze anos, intitulado “Os 12 trabalhos de Axtérix”, porque quando era mais nova, ou por não ser possível tanto consumo ou pela necessidade de gastar energia que a juventude nos proporciona, eu lia os mesmos livros várias vezes.

No referido livro, o pobre do Axtérix anda de um gabinete para outro para obter uma simples autorização num prédio parecido com aquele em que eu estava. E perante tanta burocracia nem a poção mágica o salva.
Já no final, quando coloquei o último carimbo, simpaticamente, perguntei à senhora que me atendia por uma casa de banho. Era mesmo ali ao lado. Entrei. Três lavatórios e três portas azuis fechadas. Esperei pela minha vez. Mas como não ouvia barulhos femininos característicos do uso de casa de banho experimentei abrir uma porta, à cautela, não fosse apanhar alguém com as calças na mão. Não estava ninguém. Entrei e fechei a porta. O trinco de segurança não funcionava. Algum tempo depois verifiquei que não era só o trinco que não funcionava. A porta fechava mas não abria por dentro.

Taurina de gema tento sempre o impossível: primeiro giro o puxador em várias direcções devagar, com jeito, depois abano a porta com toda a força, dou-lhe encontrões à Van Damme, sabendo perfeitamente que aquele não é o método mais indicado, arriscando-me a um ombro deslocado.
Convencida que ia ficar ali para sempre comecei a ganhar reservas para os primeiros dias. Comi uma pêra. Comi uma maçã. Bebi um pacote de leite. Fiquei sem provisões. Finalmente senti que alguém entrava na casa de banho. Gritei.

- Já está aí há muito tempo?- perguntou-me a minha salvadora.

Num relance, olhei para o espelho em frente e vi que ainda não estava coberta pelas pintas azuis do desespero.

- Eu ? Não. Só telefonei para os bombeiros, para a PSP e o 112. – respondi.
- A sério?
- Não. Estou a brincar.
da Leonor