Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Friday, December 29, 2006

Um num milhão

Ana continuava a escrevinhar o seu romance no computador que usava particularmente como máquina de escrever. Longe iam os tempos em que a sua azert portátil de cor verde era o seu espaço de fruição da sua escrita improvisada.

Leonor gostava de espreitar as palavras no monitor por cima dos ombros de Ana.

- “Pensas que se fosse do nosso mais profundo desejo não me casaria contigo? Claro que sim! - Disse-lhe ele.” –repetiu Leonor.

Ana tinha parado de escrever. Não gostava que lhe espreitassem as frases mas aguardava numa calma mal disfarçada que Leonor se afastasse e a deixasse continuar.

- Bonito! – disse Leonor e sentou-se na frente de Ana pronta para dois dedos de conversa.

- A sociedade pós moderna relativizou os sentimentos, transformando - os de tabu a banalidades mas na sua essência o homem precisará sempre de amor, de palavras e de acções constantes que lhe lembrem que é querido. Não pode negar tais manifestações de si para o outro. Do outro para si...– disse Ana.

- Claro que não. Não precisas de justificares-te. Afinal o que tu escreveste é mesmo bonito. No fundo, no fundo, toda a mulher, em qualquer idade sonha com uma história de amor. Falo de mulheres porque não conheço os homens. Nunca saberia colocar na boca de um homem as palavras de um homem. As palavras que ele diria seriam sempre as palavras que eu, mulher, queria que ele dissesse. Seriam as minhas palavras e não as dele. Por exemplo, essa frase é linda, bem ao gosto dos ouvidos de uma mulher mas será que algum homem diria isso? – perguntou Leonor.

- Um num milhão dirá. – respondeu a Ana, continuando a escrever, deixando Leonor a pensar nas possibilidades de uma estatística tão reduzida existir.

da Leonor

Friday, December 22, 2006

Compartilhar

As duas horas da tarde na sala de aula são dedicadas à Língua Portuguesa. Leio o texto. Faço um pequeno resumo para quem não conseguiu acompanhar bem a leitura. Levantamos em conjunto as palavras difíceis.

- “Compartilhar”… Bruno, sabes o que é compartilhar? – pergunto.

- Professora… é tipo assim: eu tenho um queijo, parto ao meio e dou metade à Rita.

- Sim… isso é compartilhar. João, tens outra explicação?

- Compartilhar é por exemplo, eu tenho duas flores e dou uma à Rita e fico com outra.

A Rita estava no meio dos dois. A sala é minúscula. Andamos em cima uns dos outros.

- Sim. E se tivesses só uma flor e a desses à Rita seria compartilhar? – pergunto novamente ao João.

- Não. Era dar.

- Sim senhor. Outra palavra para dar…

Braços levantam-se em frenesim. Os mais ansiosos dizem logo, em coro: oferecer.

- Muito bem.

Sinto que o conceito não ficou bem explícito. Compartilhar não é só dividir ao meio. O que é que compartilhamos? O que é que na nossa socialização primária nos foi incutido que poderíamos compartilhar o quê, como, quando e com quem? O que é que o nosso íntimo nos deixa entender por essa compartilha?


da Leonor

Saturday, December 16, 2006

"Ele nunca errou. Ele nunca voou"

Leonor lê as primeiras palavras do romance que Ana começou a escrever.

“O maior desgosto da vida de Lucinha foi ouvir aquelas palavras do seu companheiro de vinte e poucos anos de relação: Não sou teu. Não te pertenço. Ninguém é de ninguém.
A partir dai, Lucinha sentiu que perdera o rumo e que a sua vida dava uma volta nunca prevista”.

- Hummm… todo o texto tem um texto por trás… Steinbeck? – perguntou Leonor

- Que presunção a minha imitar Steinbeck. E daí não sei.

- Claro. O autor raramente reconhece as suas influências. em As Vinhas da Ira há uma frase formidável que será capaz de resumir todo o romance.

- Qual?

- “Ele nunca errou. Ele nunca voou”

- Pois. Se ele tivesse voado teria errado.

- Axiomático. É o que geralmente acontece a quem tem a audácia de voar. O erro é mais que certo.
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Devido aos mapas mentais, esquemas conceptuais – schematta, como dizem os italianos - que formamos na nossa cabeça à medida que vamos conhecendo a realidade, qualquer palavra nos transporta para outra ou outras realidades.

O “não sou teu”, lembra-me também que a gramática russa não tem pronomes pessoais, isto é, se eles têm um lápis, não dizem, “este lápis é meu”. Dizem: “este lápis está perto de mim”.

Ou seja, o lápis pode ser de quem for que isso não interessa porque se estiver perto de mim, eu uso-o independentemente do facto de ele não me pertencer.

Será que foi por esta compartilha, indiciada por uma cultura gramatical, que nasceu o comunismo naquele sítio?

Estou só a especular…

Da Leonor

Friday, December 08, 2006

A rã gorda

Meu Deus… as coisas que eu tenho aprendido.

Também posso dizer isto de outra maneira: meu Deus… as coisas que eu não sabia.

Numa cadeira que fala de textos e tudo o que anda à volta deles, inclusivé, leitores, fiquei a saber que um autor africano traduz à letra a gramática de uma das culturas bantu. E seja lá o que for que pertença a uma língua, não se traduz à letra mas no contexto semântico.

Por exemplo:

A rã gorda faz a manteiga do dia.

Ora isto assim, não se percebe nada. Mas, se desmistificarmos a frase, interpretando-a, será mais ou menos isto: quando chove, a rã bebe água e incha. Fica gorda. E se as rãs estão gordas foi porque choveu. E se choveu, a erva cresce e a vaca come para dar leite e manteiga que se comem todos os dias na tribo.

Outra coisa interessante é a língua clique, de estalidos, falada pelos busquimanes. Mas nisto não me meto porque… meu deus… as coisas que eu ainda não sei.

da Leonor

Friday, December 01, 2006

A mesma história

Todos os anos é a mesma história quando distribuo uma folha de papel pautado aos alunos e proponho escrever ao Pai Natal. Logo surgem braços no ar para reclamarem “civilizadamente” a sua vez de falar, gesto que me custou a introduzir na sala cerca de um mês e mesmo assim há quem queira ser excepção.

Sei porque metem o braço no ar mas primeiro têm que me ouvir e assim não autorizo a interrupção. E começo a falar do Pai Natal, que mora lá no fim do mundo, que tem a ajuda dos duendes, que pede a ajuda dos pais para distribuir os presentes…
Dou as orientações para escreverem a carta.

- Não peçam muitos presentes. Lembrem-se que cada vez mais há mais miúdos pobres que nunca tiveram um brinquedo e não podem ser todos para vocês. No fim do pedido não se esqueçam também de dizerem que gostam dele. Não é só pedir e toca a despachar. – digo eu.

Decido dar a palavra a quem, no início, estava tão aflito para falar. Metade dos braços tinham baixado. A pergunta veio. Eu sabia.

- Mas professora… o Pai Natal não existe. – diz o Bruno

Não lhe respondo. Dou a vez à Maria.

- Professora, vi na televisão que o Pai Natal tem uma máquina de parar o tempo.
- Pois! Agora que falas nisso é capaz de ser verdade. Por isso é que a hora de receber os presentes nunca mais chega. O tempo está parado. – digo eu.

O Bruno quer falar outra vez.

- Sim… - e fico à espera de nova investida.
- Professora, só não percebo como é que as renas conseguem voar.
ufa! penso eu.

Eu sei que a escola mata no excesso da verdade absoluta. Mas eu não quero matar. Matar, só se for saudades, como diz Sérgio Godinho numa canção.
Quando somos adultos as coisas voam só na nossa cabeça porque o mundo já matou os voos fora dela. Mas na minha sala de aula tudo vai voar dentro e fora de todas as cabeças.

- As renas voam porque têm magia. – e pus no rosto o ar mais sério deste mundo.

Só na sala de aula encontramos gente capaz de entender cada significado que cada palavra possa ter. Não o significado , em si, da palavra, aquele e mais nada. Mas o outro significado, aquele que lhe queremos dar.


Da Leonor