Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Sunday, June 25, 2006

Noventa e três

Tinha mais ou menos dezoito anos quando vi na televisão uma entrevista a um ceramista já com uma certa idade que falava da sua arte com um grande desvelo. Do nome do ceramista não me lembro. Creio mesmo que nem deitei atenção. O que me fascinou foi a sua dedicação ao que fazia, de tal modo que fiquei presa a cada uma das suas palavras, e até hoje, ainda retenho a mensagem nelas implícita: seja lá o que se fizer, tem de se fazer à grande, se não, não valerá a pena.

O senhor fazia, especialmente, bules. Fazia bules de todos os feitios e de todos os tamanhos. Com uma particularidade: as pegas dos bules eram enormes. Para ele, as pegas grandes eram a sensualidade da peça. O bule podia ser pequeno mas tinha uma asa grande. O bule podia ser grande que teria uma asa ainda maior. E de facto… os bules eram formidáveis.

Há tempos, falava com alguém sobre um assunto que me transcende: literatura, obras e autores. Alexandre Dumas. O Conde de Monte Cristo. Vítor Hugo. Os Miseráveis. Noventa e três. Este último eu não conhecia pelo que a minha interlocutora, sabendo do meu interesse, aproveita para narrar uma das partes que mais a impressionou.

E era assim: num navio há um deslize de um marinheiro que põe o barco e a tripulação à beira do naufrágio. Por boas e “malasartes” o tal marinheiro lá consegue remediar o mal feito e pôr o navio na alheta. O comandante faz-lhe a respectiva condecoração, com o respectivo discurso, dando-lhe a respectiva medalha. MAS…

…e a minha narradora abre bem os olhos e estica o indicador, tomando a pose do comandante…

… por se ter desleixado do seu dever, o navio e a tripulação correram o risco de desaparecer, etc, etc, etc… e por isso será condenado por fuzilamento.

… e a minha narradora fecha os olhos, recordando a cena daquela morte tão injusta, deixando-me deliciada por ver como alguém ainda se entrega a algo com tanta devoção nestes tempos do “faça mal e depressa” ou “ leia na diagonal”.

Lembrei-me do desvelo do ceramista quando fazia os seus bules de asa grande semelhante em tudo ao arrebatamento da minha narradora que transcrevia oralmente, à grande, as palavras do escritor francês.
da Leonor

Saturday, June 17, 2006

Um tudo quase nada

Estou na minha casa. Mas ainda não é de vez. A médica deu-me oito dias para me recompor novamente da minha entropia orgânica. Já não sei se é físico, ou psicológico, ou físico e psicológico. Como diria Leonard Wiberly: o erro pode ser seu, ou meu, ou nosso.

Quando entro no consultório chego tão fraca que nem força tenho para falar. Não preciso. A médica começa a sua verificação de ataque quando alguém está “moribumdum” ( o estado anterior a Rigor Mortis). Vê-me o pulso, a dilatação da menina do olho, a língua. Sussurro trinta e três. Ela passa-me uma, duas, três receitas.

Longe, não sei onde, oiço a Ana: tu só precisas de um tornedó mal passado e de ouvir “Love me do” dos Beatles (li isto num livro de J. K Jerome, Três homens num bote e nunca mais me esqueci.).

Saio do consultório a cambalear ajudada pela segurança inabalável da parede do corredor. Carimbo as receitas e o atestado para oito dias. O ar da rua sem o cheiro fétido das queixas dos utentes sobre o sistema de saúde acorda-me de rompante para a surpresa da realidade. Olho o relógio. Cinco e meia. Tenho meia hora. Tiro o carro do estacionamento de marcha à ré sem olhar para trás. Faço a descida mais ou menos a uns oitenta km por hora. Vejo o semáforo mudar de verde para amarelo e de amarelo para vermelho. Passa rápido! Nem sinais da polícia e se ela aparecer logo se vê!

Chego a casa. Mas não a minha casa. Subo a correr as escadas que levam ao salão. Leva-me à gare? O sogro larga tudo. Pego na minha mala como está. Deixo para trás a escova do cabelo, o secador e o creme hidratante com que costumo enganar-me ao espelho. Apanho a camioneta para Lisboa no último minuto.

Estou na minha casa. Mas ainda não é de vez. Os oito dias estão quase passados. A desorganização orgânica continua. Moribundo, moribundi, moribundum. Ou será moribundo, moribundae, moribundam?
Sento-me à secretária no meu canto da janela. A minha árvore está repleta de folhas. Este ano dei por elas todas de repente.

Ana olha para mim com um sorriso cheio de paciência.

- Está quase! – arrisca ela ao meu pensamento.
- Oh Ana! O quase quase nada pode ser um quase quase tudo.
- E essa leste onde? – perguntou rindo.
- Numa canção do Paulo Gonzo, acho eu.
- Não é bem assim mas também pode ser.


Da Leonor

Saturday, June 10, 2006

O passeio anual da escola


Hoje é um dia diferente na escola. Não vai haver contas de dividir, nem revisões sobre os múltiplos de um número, nem leitura de textos, nem respostas a questionários de interpretação. Hoje, os miúdos concentram-se junto ao portão com geleiras à espera da camioneta que os levará no passeio final daquele ano lectivo.


Faltam quinze minutos para embarcarmos e a auxiliar ainda não chegou para abrir a porta. Trago a alma à mostra na expressão do olhar e não disfarço o meu desagrado. Tenho a máquina fotográfica na gaveta da secretária e preciso de ir buscá-la. Eis que ela chega e tudo se resolve em cima da hora à boa maneira “portuga”.
Na camioneta faço a chamada. Estamos todos. Senhor motorista, siga até ao parque natural de Avintes, se faz favor.

Para se prevenir da barulheira que os miúdos fazem na camioneta o motorista coloca bem alto uma música pimba que fala das saudades que um emigrante sente do seu Portugal. A meio da viagem o André dá sinais de indisposição. O que é que comeste de manhã? Pergunto-lhe eu. O leite e o pão, diz ele.

Bom! Vai quietinho. Não mexas a cabeça. Não abras os olhos.

Talvez ele vá enjoado por causa da música que não pára de tocar. Espero que cheguemos depressa ao destino para o motorista não ter tempo de virar a cassete quando esta chegar ao fim.






No parque vimos a natureza em paz. A harmonia das árvores com os animais que lá habitam. Imensas espécies de plantas. Veados, javalis, póneis, mochos…
Líamos os cartazes que nos explicavam o modus vivendi de cada um.
- Olha! Os esquilos comem pinhas! – revelei à massa infantil.
- Não sabias professora!?
- Eu não! Eu sou lá da cidade. Só percebo de frangos depenados, ensacados e de porcos transformados em costeletas. Mas todos os dias aprendemos três coisas. Esta foi a primeira de hoje.


Ao fim de um percurso que demorou duas horas a percorrer parámos para lanchar e comer um gelado.

Com quem será que o Ricardo vai casar?

Loira, morena, careca, cabeluda


Preparados para voltar para casa, já dentro da camioneta conto os miúdos. O Bruno está com uma cara de meter dó. Perdeu a lanterna que tinha comprado. Não tinha mais dinheiro. Meti a mão no bolso de trás das minhas calças e tirei um euro.
Quantos segundos tem três minutos?
Cento e oitenta.
Então despacha-te que já começou a contar.

E o Bruno largou da camioneta a correr.

O motorista colocou de novo a mesma cassete. André… vai quietinho. Não mexas a cabeça. Não abras os olhos. Tenta não ouvir a música.
OK meninos! Trabalho de casa: redacção sobre o passeio da escola.

A Elizabete escreveu: a parte que eu gostei menos foi que andámos tanto mas mesmo tanto. A parte que eu gostei mais foi a do gelado.

A Natércia escreveu: Andámos que nos fartámos… mas valeu a pena. Gostei muito da parte do gelado.


Eu escrevo agora: Andámos tanto. Mas mesmo tanto. Mas valeu a pena. Gostei muito da parte do gelado. Detestei a parte da música. Mas enfim… é o nosso Portugal… “kitch” que torna o povo Lusitano tão peculiar.


da Leonor

Saturday, June 03, 2006

Sou uma moura

Minutos antes da última parte da aula começar Isabel entra na minha sala e diz-me que as listas definitivas da colocação de professores saem às seis horas. Ahhhhhh! A essa hora estou a fugir para casa de camioneta e lá não tenho acesso à Internet. Ana diria que “esperar é uma virtude” ao que eu retorquiria “quem espera desespera”.

Telefono ao VP e dou-lhe o endereço do site do ministério e o código que dá acesso à abertura do documento. Seis horas da tarde… agora viaja-se de dia devido aos dias serem mais compridos. Viaja-se com mais calor também. Mas a luminosidade diurna distrai o olhar nas árvores presas ao chão, trazendo da memória o texto que dou aos miúdos :

“No Meio da Floresta
havia uma adivinha.
Quem a adivinhava voltava para casa,
quem não a adivinhava nunca mais vinha.
A Sara gostava muito da casa
mas ainda gostava mais de adivinhas.
Meteu-se pela Floresta sem nenhum receio
e só parou mesmo no Meio.
Vê se és capaz de adivinhar esta
disse o Homem Mau Dono da Floresta
adivinha se vais voltar para casa ou se não,
se vais ficar aqui para sempre presa ao chão”
... e o poema continua.


Cinco minutos depois das seis
Dez minutos depois das seis

Deixo de pensar na Sara e no homem mau e desvio o meu olhar para as letras pequeníssimas da Ilha do Tesouro.

Quinze minutos depois das seis
Vinte minutos depois das seis

O VP telefona. Abriu o documento. Tem o meu nome à frente. O meu número de colocação e… o QZP de colocação.
Demasiado bom. Demasiado fácil. A primeira zona que escolhi. Vou voltar à minha Lisboa. Sentir o cheiro de óleo no pontão de embarque, olhar as cordas sujas que prendem o barco ao cais, aguentar-me direita em cima da plataforma enquanto ela oscila para um lado e para o outro ao sabor da ondulação.
No barco, ocupar o meu lugar de sempre. À mesma hora encontramos quase sempre os mesmos rostos nos mesmos lugares. Enfiamos as caras nos livros, nos jornais… na janela, reconhecendo os edifícios, o Castelo, as Amoreiras, o Terreiro do Paço, a Sé…
O rio tem várias tonalidades e várias ondulações consoante as horas do dia. às vezes é verde, às vezes é azul, às vezes é malhoco, às vezes é flat...
A fúria de ser o primeiro a sair do barco para ser o primeiro a chegar ao metro. Dão-se encontrões, ninguém liga, quando não perdemos os transportes que estão programados ao segundo.
Sou uma moura. Não tenho como negar.

“Quem espera sempre alcança” dirá a Ana



Da Leonor