Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Friday, February 23, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (4)

Quando ela chegou ele já lá estava à espera mas fez que não o viu.

- Olá- disse ele.

Ela virou a cabeça na sua direcção. Fingiu surpresa.

- Olá – disse ela.

Andaram pelas tábuas de madeira até ao cimo da duna até avistarem o mar. Dia frio de Inverno, de céu azul limpo de nuvens. Os raios de sol animavam a tarde e as almas que se conheciam desde sempre.

- Não é formidável estar aqui a ver o mar? – perguntou ele.

- É. – respondeu ela.

A espuma das ondas enrolavam na areia. Lembrou-se da canção.

- Tiveste saudades?- perguntou ele
- Faz um ano. Já não me lembrava de nada.
- Eu lembrava-me de tudo.

Também ela. Lembrava tudo ao pormenor. Mas fingiu não se lembrar.


da Leonor

Friday, February 16, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (3)

Saiu do barco apressada, um pouco entalada por outras pessoas que, como ela, ganhavam tempo na pressa de sair. No batelão tentou furar por todos os espaços disponíveis, ultrapassando os mais lentos. Na rua, correu para a camioneta. Ocupou o seu lugar na fila. Atrás dela mais gente ajudava a crescer a fila de espera. Enquanto a camioneta não chega olha-se o horizonte: meio de evitar falar com alguém conhecido e, principalmente, desconhecido.

O homem atrás de si colocou-se ao seu lado e afirmou muito seguro de si:

- Tu és ... - perguntou indeciso na sua certeza.

Ela olhou surpreendida para o homem que tão certo lhe conhecia o nome.

- Sim, sou. - ela tinha-o reconhecido.
- Andámos lá em cima no liceu.
- Andámos. - e Lia sorriu ao ver uma cara que já não via há vinte anos.
- Estás na mesma. – disse ele.

Palavras da praxe que se dizem quando o tempo abre a porta e deixa que as pessoas voltem a ver-se. Mas ela acreditou porque até o espelho lhe dizia o mesmo.

Entraram juntos na camioneta. O que fazes? Já casaste? O tempo passa…! Pois é! Nunca mais viste ninguém? Ainda és amiga da Paula? Sim, ainda nos vemos por aí.

- Vou descer aqui. – disse ela – e tu?
- Eu já devia ter descido ali em baixo.
- Oh! E agora? – Ela ficou aflita.
- Há paragens para baixo no outro lado da rua. E também posso ir a pé. – disse ele, rindo.

Desceram da camioneta. Despediram-se. E o tempo voltou a fechar as portas para os dois.
da Leonor

Friday, February 09, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (2)

Ambos partilhavam todos os seus momentos livres com o computador navegando na Internet.
E um dia, marcado pelo destino – propósito da Previdência desconhecido por ambos – cruzaram-se numa troca de mails.

A escrita dela revelava-a doce, meiga. Ele era sedutor na mensagem. Logo a empatia emergiu entre os dois. Geraram palavras de brotar sentimentos camuflados nas suas vidas rotineiras.
Noutro dia – já marcado por eles, propósito desconhecido da Previdência - saltaram para o lado de fora do écran, escolhendo um sítio conveniente para ambos onde o aroma do café se misturava com fumo de cigarro.

Ele sorrira e ela viu-lhe os dentes já um pouco gastos pelos anos. Ela retribuiu-lhe o sorriso, permitindo que ele percebesse as rugas ao canto da boca que já não eram rugas de expressão. Quando ele tirou os óculos, os mesmos que ela vira na foto, estremeceu com os seus olhos grandes, demasiado afastados que lhe ofereciam algumas semelhanças com um sapo. A pele ligeiramente flácida do pescoço dela complementavam a mesma idade dos sulcos dos cantos da boca.

No principio o acabrunhamento habitual provocado pelos fluidos passados no instante que não se controla (ah, o quotidiano da palavra escrita não é o mesmo da palavra falada). A primeira - a palavra - é pensada, manipuladora. A segunda, perde-se trocada pela sua espontaneidade No dia a dia não se diz o que se queria dizer mas quando se diz, a partir do momento em que se diz, está dito.

Olá
Olá.
Tudo bem?
Tudo bem.
Risos….e a conversa que não vinha. Ambos olharam para o relógio ao mesmo tempo.

Não te disse nada mas surgiu-me um imprevisto mesmo há pouco. A minha tia caiu da escada. A minha mãe pediu-me para lhe fazer umas compras. – disse ela.

Ele fingiu um certo transtorno mas no fundo as palavras dela surgiram-lhe como um alívio de tempo contrariado.

Mais dez minutos para não parecer mal. Pensaram os dois. Sempre tinham algumas afinidades. Disseram adeus, seguindo caminhos opostos.

A palavra escrita de um para o outro tinha acabado. Voltaram a matar o tempo da solidão atrás da máquina de fazer palavras, de inventar sentimentos, navegando calmamente nas imagens virtuais da net.
da Leonor

Friday, February 02, 2007

Coisas do ler e do escrever

Aprendi a gostar de ler quando comecei a juntar as letras umas às outras. Com o tempo fui descobrindo o que hoje sei, de modo cientifico, e na altura apenas por intuição: que podemos tirar às palavras o seu referencial e interpretá-las segundo muitas formas, dando-lhe outros significados, os significados das nossas carências, dos nossos desejos.

Cedo descobri também a escrita. E cedo descobri também, a censura na pessoa da minha mãe que não percebeu o meu talento precoce em imaginar romances de amor. Os meus primeiros contos, escritos em cadernos magrinhos, foram cruelmente despedaçados e deitados fora para o balde do lixo com a ameaça de que se eu voltasse a entreter-me com parvoíces em vez dos assuntos da escola…

Fiquei profundamente traumatizada mas na altura não conhecia Freud como conheço hoje porque se não ele ter-me-ia acalmado dizendo que estava a passar por um sério complexo de Édipo e que nunca mais teria cura. Precavi-me, deixando de ter coisas escritas e arranjei um ficheiro num dos cantos da minha mente, mais propriamente na zona occipital que dá para o jardim, onde dava azo às minhas imaginações, escondendo-as algures por ali, de modo a ninguém descobri-las, nem quando eu dormia.

Mas a minha grande fase da leitura aconteceu por volta dos vinte anos, prolongando-se pelos quinze anos seguintes. Nunca lendo mais do que um livro de cada vez a fim de não entupir o gargalo da ampulheta do meu entendimento, fui fazendo dos autores os meus amigos. Cada livro era uma conversa. Quando a conversa acabava, mais dia menos dia, voltávamos à mesma conversa. E de todas as vezes que eu e certo autor conversávamos sobre o assunto já conversado, alguns aspectos nunca antes vistos, emergiam. E eu perguntava-lhe: porque não disseste isto da outra vez? Ao qual ele me respondia: foste tu que não ouviste.
da Leonor