Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Friday, December 28, 2007

Cessar hostilidades

Ontem, enquanto esperava pelo sono já deitada na minha cama, pensei numa introdução muito bonita para começar este post. Como não a apontei, esqueci-me. Bem me dizia o professor Carrola: Escreve. Escreve tudo porque a nossa memória é selectiva.
A nossa memória só lembra do que ela quer, e ainda por cima, algumas vezes ou a maior parte das vezes, lembra-se quando não queremos lembrar.

Quando me deparo com uma pessoa interessante, tenha ela a idade que tiver, colo-me a ela. Exploro-a no sentido de satisfazer a minha curiosidade intelectual, de lhe achar afinidades que joguem com as minhas numa procura de “ah, afinal ainda há gente que é do meu clube”.
Falava com a Maria, vinte anos mais nova que eu, sei lá a propósito de quê, quando descobri que ela também lia e, obviamente, gostava de ler.

- Conheces Mário Bennedetti? – perguntou-me ela.
- Não.
- Tens que ler “A trégua”.

Ah! Já me lembro do que falávamos, eu e a Maria: de rotinas.

Ganhei o hábito de ler emprestado. Acho os livros caros. Mas não é por isso que eu não gosto de pagar por eles. Os meus amigos gostam de me emprestar livros. E eu habituei-me a não comprá-los. Quando mos emprestam é como se mos dessem e quando os olho arrumados nas prateleiras da minha estante lembro-me de cada um deles, consoante o livro em questão: a Fernanda, a Maria, a Isabel, o Gordo. É uma mania que implica a companhia presente quando ela não está ou não se faz, pela distância de ritmos diferentes impostos pela vida.

- Eu trago-te o livro. Tens de o ler. – disse-me ela.

Desconfiei do apelido do autor. Desconfiei da capa. Apenas o título me induziu a experimentar a visão da primeira página. O diário de um homem que se encontra a pouco tempo da reforma, que tem um trabalho fastidioso onde os números imperam e conta a relação dele com os seus dias, com as pessoas que moram e trabalham com ele. Um diário simpático, melancólico, mas bem humorado, de alguém que desejaria outra coisa para si mas que não foi possível.

De alguma forma vejo-me nos defeitos e nas qualidades do narrador tal é o modo como ele escreve para chegar-se a mim.

A trégua, cessação temporária de um destino obscuro em que deus se dispõe dar um pouco de felicidade ao narrador para depois fazê-lo continuar num destino ainda mais obscuro que o anterior.

Quantas tréguas me deus este ano? Assim de repente… a memória falha.

Ofereceram-me neste natal uma agenda muito bonita rosa e amarela de um plástico macio e brilhante que apetece trincar. apontarei nela, desde o primeiro dia do ano, as suspensões temporárias de hostilidades, os instantes de alívio que eu mereço.
Leonoreta

Thursday, December 20, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (18)

Era outra vez Natal. Quando ela era pequena gostava do Natal. O Natal era-lhe sinónimo de prendas. A mãe colocava-as junto da árvore à medida que elas iam aparecendo lá em casa. Esta é da tia para o pai. Esta é da mãe para ti. Ela não abria nenhuma caixa. Sempre fora obediente. Além disso, gostava de ver os embrulhos de papel vistoso e fita larga e torcida, mas numa curiosidade quase mórbida queria saber antes do dia destinado ao desfazer dos laços o que lhe tinham comprado. Nunca abria uma caixa mas instigava a mãe de modo sistemático, insistentemente. De que cor é? É quadrado? Tem cabelos? Diz a primeira letra. E agora quantas letras tem?
A mãe trocava-lhe as voltas mas o que ela queria era o soslaio do olhar, o passo em falso no sorriso.

- Dá-me uma prenda de Natal. Faz-me um desenho. – disse ele.
- Não é fácil fazer um desenho. Para mais, eu não sei desenhar. – disse ela.

Ela desenhava como as crianças. Todos os seus traços eram naif. Contudo, ela fê-lo.
Uma clareira no meio de uma floresta, um céu azul sem nuvens. Apenas três pássaros ao longe. Ele e ela de frente um para o outro, sentados no chão, na partilha de uma merenda.

Ele olhava o desenho.

- Não vais pendurá-lo por cima da mesa de cabeceira? – perguntou-lhe ela ironicamente.

- Nota que não te vou fazer uma critica, apenas uma constatação. É sem duvida um espírito infantil o que preside ao desenho. Adoptaste o Universo das crianças porque constitui um espaço de fuga. "A arte da fuga" é uma constante nos artistas que só varia no modo e nas preferências. Imaginário infantil e até a própria arte de não dizer mas, sugerir, como acontece nos teus textos, faz me lembrar o Pessoa quando diz: "a arte é uma confissão de que a vida não basta". A ti não só não te basta como ainda por cima te aflige.

Ela ouvia-o de sobrolho franzido. Um dia quis experimentar saltar para a vida e para as pessoas numa transparência de fazer doer. Quando quis retroceder era tarde demais.
Leonoreta

Friday, December 07, 2007

Alma inquieta

Ana estava deitada a todo o comprimento do sofá de barriga para cima e de perna traçada. Segurava um livro com ambas as mãos à altura dos olhos. Num primeiro contacto com o livro fazia uma leitura na diagonal, demorando-se um pouco mais nos primeiros parágrafos deste ou daquele capítulo cujos títulos se mostravam mais sugestivos.

Leonor, alma inquieta, ziriquitava por ali querendo conversa.

- Estou a lembrar-me de uma parábola… aquela do mestre e do discípulo em que o discípulo não ata o cavalo e o cavalo foge… sabes qual é? – pergunta Leonor.

- Não. – responde a Ana, continuando a sua leitura.

- Sabes sim! … Aquela em que o discípulo deixa o cavalo sozinho e o mestre diz-lhe “tinhas que o ter atado”… esqueci-me… não sabes?

- Não.

- Eu sabia… agora já não me lembro muito bem, mas havia um mestre e um discípulo que tinha um cavalo que o deixou fugir porque não o atou durante a noite… bom, isto para concluir que…- as parábolas têm uma moral não é? - existem entidades superiores que te ajudam mas que só podem ajudar-te se fizeres metade do serviço porque lá na dimensão onde elas existem não podem fazer laços para o cavalo não fugir ou preencher o totoloto para ganhares o totoloto. Percebes?

Ana já sabia que muitas das perguntas da Leonor eram retóricas e por isso não respondeu. Ela tinha o costume de falar alto para arrumar ideias soltas. Era uma espécie de arrumar livros na estante pelas grossuras da lombada.

- … daí que o discípulo tinha que ter atado o cavalo para que deus não permitisse que ele fugisse. Já te lembras ? – continuou Leonor.

- Não. – Ana passava agora os olhos pelo índice remissivo.



Leonoreta