Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Saturday, July 29, 2006

Quem inventou o telemóvel?

Leonor procura na mala as chaves da porta do prédio onde mora. Aquela mala tem de tudo lá dentro. Aparece o casal do quarto andar que a conhece desde pequena.

- Bons dias! Tás boazinha?
- Tudo bem, obrigado!

Enquanto Leonor se entretém nos cumprimentos, enfia mais uma vez a mão na mala à procura das chaves. Aproveita a boleia dos vizinhos e entra no prédio.

- Então até logo…

E fica-se pelo primeiro andar. Os vizinhos seguem escada acima.
Não acredito! Pensa Leonor. Meu deus! Quanto tempo vou ficar aqui até que venha alguém?

Leonor senta-se na escada junto à porta. Outros vizinhos aparecem e brincam com a situação dela. Oferecem-lhe a casa para não ficar ao "relento". Leonor conhece-os a todos desde pequena mas recusa. Brincou em casa de todos eles com os respectivos filhos.

O Gil aparece cerca de meia hora depois. O semblante de Leonor ilumina-se numa alegria incandescente.

- Oh Gil! Estou aqui há meia hora. Já pensava que ia ficar a tarde toda.
- Mami… não tenho a chave. – diz-me desiludido.

Os dois sentam-se no degrau e conversam sobre o que foi o dia. O desaire não importa. Aguenta-se. Pode ser que entretanto o Guilherme chegue e os salve. De facto chegou mas também ele não tinha o objecto mágico.

- Senta aí! – disse a Leonor.

E aconchegaram-se os três no mesmo degrau, vendo as horas a passar, fazendo contas ao episódio do "Pretender" que estava a começar… que estava a dar… que estava a acabar. O Pretender mudava de identidade todos os dias e a Miss Parker não parava de persegui-lo… os três conjecturavam sobre o episódio daquele dia e relembravam cenas giras de episódios anteriores.

Até que chegou o VP e lhes abriu a porta, abanando a cabeça num silêncio reprovador em triplicado.

Quinze anos depois, Leonor procura dentro da mala a mesma boneca de prata que o pai lhe ofereceu num natal já muito longínquo e que lhe segura as chaves desde então. Pegou no telemóvel.

- Gil! Estás por perto? – e sentou-se no degrau por pouco tempo. Agora havia telemóveis.


da Leonoreta

Saturday, July 22, 2006

Deus é matemático

O número PI, é o número irracional mais famoso da história da matemática, com o qual se representa a razão constante entre o perímetro de qualquer circunferência e o seu diâmetro . Leonor tenta tirar a cortina da sua ignorância para as permissas matemáticas, tão objectivas e tão cruas, fazendo contas e desenhos….

Matematicamente rigorosa nos horários, às seis da tarde Leonor está na cozinha a fazer o jantar. Gil chega da rua e, parando na ombreira da porta da cozinha, coloca as mãos na cintura, ao mesmo tempo que meneia a cabeça como o Alfredo Marceneiro.
“Foi um toiro que o matou, num dia de infelicidade, e eu nunca mais montei, nem sei se o farei, tal é a saudade”.

Leonor descasca batatas para depois cortá-las em palitos. Como sempre não lhe dá confiança porque sabe que dali a segundos vem a espada que lhe encosta a garganta à parede.

Gil passa despercebidamente por ela, abre a porta do frigorífico para tirar água fresca e à queima roupa – ela sabia – pergunta-lhe:

- Sabes o que é o número PHI?
- Sei – sorri Leonor pronta para o braço de ferro. Canja. A espada nem chegou a aleijar.
- Não é o número Pi!
- Sim, sim! É o número PHI do Fibonacci. Conheço.
- DO Fibonacci, não. DE Fibonacci. O “do” implica que conheces muito bem o dito senhor e andaste com ele na escola o que não é verdade.
- Fui eu que te ensinei isso.


Leonor não consegue explicar lá muito bem o número PI porque não o compreende mas o número PHI, o numero de Deus já o percebe, talvez por ser tão fantástico. O trabalho do matemático do século XIII em desvendar a perfeição do Grande Mestre Cósmico é uma coisa fabulosa.

O número PHI está presente em todas as coisas da natureza. Deus criou tudo segundo essa fórmula. TUDO! Desde a anatomia da mosca, ao número de machos e ao número de fêmeas existentes numa colmeia até ao tamanho dos ossos, da boca, do nariz de qualquer pessoa.
Por exemplo: mede-se o corpo inteiro da cabeça aos pés. A seguir mede-se desde o umbigo até aos pés. Divide-se o primeiro número pelo segundo e dá… 1,618.
Outro exemplo: medimos o rosto da testa ao queixo. A seguir medimos da testa à ponta do nariz e dá… 1,618. Leonardo da Vinci pintou a sua Mona Lisa tendo em conta estas medidas.

O que espanta Leonor é a dimensão do conhecimento em alturas em que pouco mais havia do que a roda, o fogo e a liga dos metais proporcionalmente à era moderna que tem satélites no espaço.

Será que contando todos os grãos de areia do mundo e, medindo um grão de areia e, dividindo o dividendo pelo divisor, teremos um quociente de 1,618?

Não duvides Leonor. Não duvides.


da Leonor

Saturday, July 15, 2006

Origamis

Sentada no seu canto da marquise, de janela aberta para receber o fresco que começa a correr ao fim da tarde, Leonor arruma fichas do ano lectivo que acabou, num dossier de lombada larga a que deu o nome “para arrumar com calma no dossier respectivo”.

Gil afasta a cortina do seu quarto, uma das saídas daquele canto pequeno onde cada prateleira e cada gaveta minuciosamente arrumadas valem ouro pelo espaço disponível que oferecem.

Gil afasta a cortina e cola a cara no vidro da porta preumindo um zombi. Leonor esboça um sorriso mas finge que não o vê. É brincadeira mas a expressão dele, quieta no seu olhar vítreo, secretamente, assusta-a.

Perante a frustração de não ser reconhecido como o homem das catacumbas, Gil abre a porta e diz em alto e bom som: BOA TARDE!

Vem conversar comigo. Contar o dia de hoje ou o anterior. Coloca as duas mãos no parapeito da janela e olha o verde da paisagem enfeitado pelo melro solitário que habita desde sempre o espaço em frente. A sua contemplação não dura muito tempo. Miudo, rapaz, homem irrequieto, pega numa folha pautada A4.

- Olha para mim! – diz ele, roubando a minha atenção seja a que preço for. – Estimado público, precisamos de um quadrado. – E corta um quadrado. – Depois dobramos o quadrado ao meio. Assim desta maneira. – E roda o quadrado para um enorme suposto público ver bem a dobra . – depois, dobramos o lado esquerdo e seguidamente fazemos o mesmo do outro lado.

- Gil! Não me vais ensinar a fazer um avião. Gil! Pára. Eu sei fazer aviões há anos. E depois daqui desta casa só saem aviões de papel ou pela porta da rua ou pela janela da varanda. Por favor!

- Fazemos mais uma dobra do lado esquerdo e seguidamente…- Gil ignora as súplicas da mãe.

- OH! “CA PACIÊNCIA, PÁ!”. Eu não quero saber de aviões para nada. - grita Leonor. - eu já não posso ver aviões à minha frente.

- Agora desmanchamos tudo! E perante a notável tentativa de erro do estimado público, dobramos metade do lado esquerdo em leque e metade do lado direito… em leque também.

As novas dobragens do origami prenderam a atenção de Leonor. Ali estava uma coisa nova.

- Mais uma dobra para cima. E mais outra. Estimado público… taraaaaaaaaaam!

- Que giro! Um cisne! Tão giro!!! Já posso fazer com os miúdos quando contar o Patinho Feio. – disse Leonor deliciada, admirando o boneco de todos os lados.

- Hã, hã! Pois podes! - O gil gozava a vitória obtida com o meu encantamento, com uma cara pretensiosamente indiferente. Depois explodiu no seu bom humor - MAS É CÁ UMA PACIÊNCIA, PÁ!


da Leonor

Saturday, July 08, 2006

Mete a mão no saco

Mesmo que gostemos muito do nosso trabalho, nele existe sempre algo que dispensamos de bom grado. Como professora, não gosto de avaliar os meus alunos. Não gosto de catalogar o Bruno como o melhor aluno da sala e a Diana como a pior. Apesar de ser um facto que as duas crianças apresentem capacidades cognitivas diferentes, na verdade, as aprendizagens não se fazem de maneira igual e se algumas coisas podem escapar ao Bruno, outras a Diana apreendeu.

Deste modo, penso que a avaliação das competências adquiridas é a parte mais séria do processo ensino aprendizagem e tem que ser feita com muita consciência. Meu deus! Estou a vomitar o que aprendi na universidade.

Como avalio o meu aluno? Pelo trabalho, pelo empenho, pelo interesse, pela atenção, pela vontade que mostrou em participar e em melhorar os seus erros. Se o ritmo lento da Diana não a levou tão longe como levou ao Bruno, levou-a a meio do caminho e é isso que eu vou ter em conta quando a avaliar.

Mas o pior chega quando tenho de escrever num espaço de cerca de quinze centímetros por quatro uma redacção que, simultaneamente, diga ao aluno que não está mal e diga ao encarregado de educação que o seu educando podia estar melhor.

Levo tempo a escolher as palavras certas para que ninguém fique comprometido, particularmente, eu. Porque se é certo que nenhuma aprendizagem é nula também é certo que umas aprendizagens se fazem melhor que outras.

As avaliações implicam a reunião com os encarregados de educação e um discurso bem preparado da professora para que aqueles não demorem muito tempo a entender que todos (professora, encarregado de educação e aluno) têm funções a cumprir para que tudo se realize no sentido esperado. Mesmo assim, não escapo a quatro horas de conversa, divididas por dois dias.

Nunca autorizo a presença do aluno nas reuniões, a não ser na última, em que ele sabendo que já passou de ano, tem realmente a confirmação. Mas não é por causa disso que o quero presente. Há a surpresa de todos “meterem a mão no saco dos ditados” que pode ir desde um chocolate a uma borracha ou um cromo. Durante o ano só “metia a mão no saco” quem tinha 0 erros.

- Cuidado com a aranha morta que eu coloquei ai ontem. – vou sempre avisando.

Eles gritam apavorados, retirando a mão do saco repentinamente. Depois, continuamos a brincadeira.

Até agora nunca retive um aluno. Prefiro “puxar” por ele depois do Natal até ao fim do ano lectivo para que transite, sabendo interpretar um texto e fazendo as quatro operações com aquela sensação de que é bom aprender e saber fazer. Não sou eu que vou carregar uma criança com o estigmatizante rótulo de “burro” para toda a sua vida.

Sinto a vontade dos pais em meter a mão no saco também. Um dia deixo-os experimentarem.


da Leonor

Saturday, July 01, 2006

A circunstância

São oito horas da noite de uma sexta feira de Junho. Há duas que Leonor chegou do norte do país. Para a semana cumpre a sexagésima segunda ou quarta viagem entre o Minho e Lisboa. Mais viagem, menos viagem. Ela podia tê-las contabilizado ao pormenor através dos rebuçados que a hospedeira distribuía aos passageiros a cada viagem mas a meio do tempo perdeu-se em fragmentos neurónicos que se alojavam casualmente em determinados pontos da sua massa encefálica, deixando-lhe todo o resto em branco, sem nenhuma expectativa de sinapse entre eles. Além do mais, a meio do tempo, passou a comer os rebuçados também.

Tomou duche. O cheiro do seu gel, o toque da sua esponja trouxeram-lhe aos poucos a recordação guardada inconscientemente das paredes do seu duche. Abre a gaveta da sua cómoda. Remexe nas suas t-shirts. Escolhe o seu pólo branco de cavas. Troca de mala de mão. Sai para a rua para jantar num restaurante. Aquele lá em baixo, em Cacilhas, na esplanada, virado para o rio.

VP, mais rápido, vê o correio daquele dia com a caixa ainda de porta aberta. Lê um panfleto publicitário de uma excursão e passa-o a Leonor quando esta se chega perto.

- Excursão ao Minho! Queres ir? – pergunta-lhe ele irónico.

Todas os palavrões conhecidos ao longo da vida de Leonor saem da sua boca numa sucessão ininterrupta. Locke diria que a circunstância faz o indivíduo. VP faz um avião do panfleto, sopra no bico para aquecer os motores e mete-o a voar.


da Leonor