Carne Vale
A meio do 2º período lectivo a escola pára três dias para a pausa carnavalesca. Pausa merecida tanto para professores como alunos a fim de ganharmos forças para metermos na cabeça as medidas de comprimento, de massa e de volume já que conhecemos de trás para a frente todas as funções do corpo humano e toda a cantilena do manual de Língua Portuguesa: no Outono as folhas caem e as andorinhas partem; no Inverno faz um frio de rachar; na Primavera as folhas nascem e as andorinhas voltam; no verão faz um calor de assar. Para não falar no massacre neurónico feito na forma de monossílabos, palavras esdrúxulas - que graças a deus, aparte todos os acordos ortográficos, continuam a ser acentuadas – e outras coisas que tais.
E porque a gramática é tão secante para os miúdos como para mim transformo a questão. O importante não é bem identificar adjectivos nas frases mas o que fazer com eles no dia a dia, na nossa relação com os outros. E surgem grandes conversas de carácter filosófico bastante profundo: “no outro dia o Bruno chamou estúpida à Diana”, diz o Marco. “Pois, pois! Estúpido é um adjectivo muito forte. Se calhar podemos arranjar outro que ofenda menos”, digo eu.
Acabo de estacionar o carro em frente à escola e vejo o Dom Afonso Henriques disfarçado na figura do Martinho.
- Bom dia magestade! Quantos mouros já pôs a mexer hoje? – pergunto-lhe.
Pergunta avançada para o Martinho que ainda anda no 3º ano. Breves noções da História de Portugal dá-se no 4º ano. Claro que ele sabe o nome do fundador da nação. O que desconhece são os pormenores da conquista.
Martinho retribui com um bom dia meio cabisbaixo, estranho numa roupa que não é a sua. Daí a pouco a sala enche-se de bruxas, homens aranha e princesas. Henrique, seis anos feitos há pouco, prostra-se na minha frente vestido de palhaço à espera de um “que liiiiindo!” da professora. A peruca de caracóis de fibra amarela incomoda-o mas ele aguenta estoicamente. Daí a bocado há-de pedir-me para tirar o laço que lhe afoga o pescoço.
Dou a ideia de um concurso de máscaras. Cortam papelinhos pequenos para a votação secreta. Desfilam em fracções de segundos na frente dos colegas. Ganha a Catarina, linda no seu traje de princesa. Na corte do rei Dom Dinis não escaparia, por certo, às suas Cantigas de Amigo.
- Ok! Como já fizemos muitas máscaras podem ir brincar até serem horas do desfile na rua. - E despacho a algazarra para o pátio.
Carne vale. Três dias que a Igreja estipulou ao "rebanho" para extravasar para depois "as ovelhas" poderem aguentar os quarenta dias de Jejum que vão até à Quaresma.
Na sala ouve-se o sino da igreja que dobra por um defunto: uma senhora de noventa anos cuja fotografia aparece em todas as portas de todos os estabelecimentos lá do sítio. Não chegou a ver o seu nonagésimo primeiro Carnaval. A vida são dois dias. E o Carnaval… três.
Da Leonor
E porque a gramática é tão secante para os miúdos como para mim transformo a questão. O importante não é bem identificar adjectivos nas frases mas o que fazer com eles no dia a dia, na nossa relação com os outros. E surgem grandes conversas de carácter filosófico bastante profundo: “no outro dia o Bruno chamou estúpida à Diana”, diz o Marco. “Pois, pois! Estúpido é um adjectivo muito forte. Se calhar podemos arranjar outro que ofenda menos”, digo eu.
Acabo de estacionar o carro em frente à escola e vejo o Dom Afonso Henriques disfarçado na figura do Martinho.
- Bom dia magestade! Quantos mouros já pôs a mexer hoje? – pergunto-lhe.
Pergunta avançada para o Martinho que ainda anda no 3º ano. Breves noções da História de Portugal dá-se no 4º ano. Claro que ele sabe o nome do fundador da nação. O que desconhece são os pormenores da conquista.
Martinho retribui com um bom dia meio cabisbaixo, estranho numa roupa que não é a sua. Daí a pouco a sala enche-se de bruxas, homens aranha e princesas. Henrique, seis anos feitos há pouco, prostra-se na minha frente vestido de palhaço à espera de um “que liiiiindo!” da professora. A peruca de caracóis de fibra amarela incomoda-o mas ele aguenta estoicamente. Daí a bocado há-de pedir-me para tirar o laço que lhe afoga o pescoço.
Dou a ideia de um concurso de máscaras. Cortam papelinhos pequenos para a votação secreta. Desfilam em fracções de segundos na frente dos colegas. Ganha a Catarina, linda no seu traje de princesa. Na corte do rei Dom Dinis não escaparia, por certo, às suas Cantigas de Amigo.
- Ok! Como já fizemos muitas máscaras podem ir brincar até serem horas do desfile na rua. - E despacho a algazarra para o pátio.
Carne vale. Três dias que a Igreja estipulou ao "rebanho" para extravasar para depois "as ovelhas" poderem aguentar os quarenta dias de Jejum que vão até à Quaresma.
Na sala ouve-se o sino da igreja que dobra por um defunto: uma senhora de noventa anos cuja fotografia aparece em todas as portas de todos os estabelecimentos lá do sítio. Não chegou a ver o seu nonagésimo primeiro Carnaval. A vida são dois dias. E o Carnaval… três.
Da Leonor