Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Saturday, February 25, 2006

Carne Vale

A meio do 2º período lectivo a escola pára três dias para a pausa carnavalesca. Pausa merecida tanto para professores como alunos a fim de ganharmos forças para metermos na cabeça as medidas de comprimento, de massa e de volume já que conhecemos de trás para a frente todas as funções do corpo humano e toda a cantilena do manual de Língua Portuguesa: no Outono as folhas caem e as andorinhas partem; no Inverno faz um frio de rachar; na Primavera as folhas nascem e as andorinhas voltam; no verão faz um calor de assar. Para não falar no massacre neurónico feito na forma de monossílabos, palavras esdrúxulas - que graças a deus, aparte todos os acordos ortográficos, continuam a ser acentuadas – e outras coisas que tais.

E porque a gramática é tão secante para os miúdos como para mim transformo a questão. O importante não é bem identificar adjectivos nas frases mas o que fazer com eles no dia a dia, na nossa relação com os outros. E surgem grandes conversas de carácter filosófico bastante profundo: “no outro dia o Bruno chamou estúpida à Diana”, diz o Marco. “Pois, pois! Estúpido é um adjectivo muito forte. Se calhar podemos arranjar outro que ofenda menos”, digo eu.

Acabo de estacionar o carro em frente à escola e vejo o Dom Afonso Henriques disfarçado na figura do Martinho.

- Bom dia magestade! Quantos mouros já pôs a mexer hoje? – pergunto-lhe.

Pergunta avançada para o Martinho que ainda anda no 3º ano. Breves noções da História de Portugal dá-se no 4º ano. Claro que ele sabe o nome do fundador da nação. O que desconhece são os pormenores da conquista.

Martinho retribui com um bom dia meio cabisbaixo, estranho numa roupa que não é a sua. Daí a pouco a sala enche-se de bruxas, homens aranha e princesas. Henrique, seis anos feitos há pouco, prostra-se na minha frente vestido de palhaço à espera de um “que liiiiindo!” da professora. A peruca de caracóis de fibra amarela incomoda-o mas ele aguenta estoicamente. Daí a bocado há-de pedir-me para tirar o laço que lhe afoga o pescoço.

Dou a ideia de um concurso de máscaras. Cortam papelinhos pequenos para a votação secreta. Desfilam em fracções de segundos na frente dos colegas. Ganha a Catarina, linda no seu traje de princesa. Na corte do rei Dom Dinis não escaparia, por certo, às suas Cantigas de Amigo.

- Ok! Como já fizemos muitas máscaras podem ir brincar até serem horas do desfile na rua. - E despacho a algazarra para o pátio.

Carne vale. Três dias que a Igreja estipulou ao "rebanho" para extravasar para depois "as ovelhas" poderem aguentar os quarenta dias de Jejum que vão até à Quaresma.

Na sala ouve-se o sino da igreja que dobra por um defunto: uma senhora de noventa anos cuja fotografia aparece em todas as portas de todos os estabelecimentos lá do sítio. Não chegou a ver o seu nonagésimo primeiro Carnaval. A vida são dois dias. E o Carnaval… três.


Da Leonor


































Sunday, February 19, 2006

O Primeiro Aniversário




Hoje venho falar de dias especiais.

E, assim, entenda-se por dia especial o dia que, não tendo significado para os outros, tem para mim. Todos nós temos dias especiais, completamente nossos.

Os dias especiais trazem à baila aquela velha questão do Profano e do Sagrado. Um dia qualquer, de um mês qualquer cinzento, igual aos outros, rotineiro no seu caminhar, este ano, o outro e mais o outro, sem ilustração…profano. E de repente, num dia, em certo dia, fica um dia especial… recebeu o carácter de sagrado por meio de certas emoções, ganhando cor e significado.

O dia especial, quando partilhado por alguém, requer uma comemoração. O símbolo traduzido numa palavra, num gesto…

Hoje, o meu blog faz um ano de existência. O dia 19 de Fevereiro, até então sem sentido para mim, passou a ter uma certa importância. Comemoro-o com a publicação deste texto, dizendo muito obrigado a todos os que me acompanharam desde o início e que me incentivam nas minhas histórias da escola, da Ana e da Leonor, do que me apetece escrever… com os seus comentários de ouro.

da Leonor

Saturday, February 11, 2006

Tentamos as vezes que forem precisas.


Ultimamente a minha mesa anda um caos com fichas do corpo humano, de constelações estrelares e de poliminós. Uma ponta do livro do professor aparece timidamente por baixo dos desenhos das teias de aranha desenhadas pelos miúdos do primeiro ano a fim de interiorizarem a letra T.

- Professora, posso desenhar a aranha? – perguntou de manhã o Luís Carlos nos seus precoces e muito decididos seis anos.
- Desenha! E até podes colocar uma mosca morta pendurada num fio se quiseres.

Ainda estou no intervalo do meu almoço mas a última meia hora dedico-a a arrumar os papéis para prosseguir a parte da tarde. Procuro o ofício que informará o agrupamento da visita de estudo que a escola efectuará na semana seguinte.

Num instante toca para a entrada e no último minuto encontro o bendito papel. Os miúdos são pontuais. Geralmente fazem fila à porta esperando a minha ordem para entrar. Porém, desta vez, a Natércia rompe pela porta esbaforida em direcção à minha secretária. De faces vermelhas a arderem de ansiedade conseguiu dizer por entre a respiração ofegante.

- PROFESSORA!!! O Tony mandou um chuto e a bola foi parar lá a cima à árvore e ficou lá presa e o Bruno quis tirar de lá a bola e mandou um chuto na dele e ficou lá também.

A Modesta, em silêncio, entrega-me um napron de papel feito por ela. dividindo a minha atenção entre ela e a colega.

- O quiê? - disse eu tentando imitar a pronúncia do norte, lendo simultaneamente a dedicatória que a Modesta escreveu para mim a um canto do napron: “para a profeçora”. Costumo mandar escrever os erros ortográficos vinte vezes cada um, mas desta vez não me atrevo. Deixo a oportunidade para a semana seguinte. Não quero esmorecer o afecto da minha aluna.

- Bom! Explica lá melhor. Mas com calma. Com calma. – disse eu.

Ela explicou mais uma vez. Ok, rapaziada. No fim da aula vamos lá tirar as bolas, disse eu.
Quando faltavam dez minutos para acabar a aula, peguei em dois dos rapazes. Passei pela despensa e peguei numa esfregona. Andámos na direcção da suposta árvore.

- Professora, as bolas estão ali. – e o Martinho apontou para o alto.

A árvore era enorme. De ramos completamente despidos pelo Inverno segurava magestosamente duas bolas muito perto uma da outra como se fossem dois ninhos… ou dois ovos.

Fiquei a medir a altura da árvore com os olhos. Senti-me ridícula com a esfregona na mão. Desejei uma rabanada de vento, à boa maneira de Mary Poppins, mas nada. Nem um ventinho soprava.

- Pois é, rapazes. Quis ajudar mas não consigo. Estão muito altas.

No dia seguinte logo pela manhã os miúdos entram triunfantes, dizendo-me que já conseguiram tirar as bolas.
- Como é que conseguiram? – perguntei curiosa.
- Com a bola do Carlos do 4º ano.


da Leonor

Saturday, February 04, 2006

A meio da viagem

Ana... conheces aquela sensação quando o barco larga o cais e parte para o mar alto? - diz, finalmente, Leonor ao fim de uma tarde longa de silêncio em que a amiga, conhecendo-a bem como conhece a sua alma, nunca se atreveu a interromper.

No princípio - continua Leonor - saber o que a novidade de algo desconhecido te pode trazer pode entusiasmar-te mesmo que não tenhas escolhido a viagem. O barco lança-se ao mar e tu vais perdendo a terra de vista. E quando a deixas de ver completamente concentras-te na dança das ondas e na linha do horizonte. Quando ficas a conhecer todo o ondular do mar, de manhã, à tarde e à noite desejas ardentemente outra coisa qualquer. É assim que, quando aparece um albatroz naquele deserto marítimo a tua alma voa com ele. Mas o corpo fica preso no convés. E tu não podes sair do barco… depois… depois a meio da viagem o barco começa o seu percurso para terra. Ainda não a vês mas já a sentes, … depois… já não é a imensidão do mar que atrapalha a ânsia de quereres o pé em terra firme. É o tempo que não passa. Os segundos são minutos, os minutos são horas, as horas são dias. Os dias são anos. E quanto mais perto estás do que tu desejas mais o tempo emperra nos ponteiros do relógio.
Ana ouviu. Não diz nada. Leonor cala-se novamente.


da Leonor