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Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Saturday, January 14, 2006

Poltergeist

Ana pergunta a Leonor se esta precisa de ajuda nalguma tarefa doméstica porque a Leonor só gosta de escrever, de ler…e aquele ar enlevado, fixo numa dimensão constante de ficção leva a amiga a prestar-lhe serviços, os comezinhos, triviais, enfadonhos que não gosta de fazer.

Ana vai para a cozinha. Abre o frigorifico e vê que legumes há para fazer uma sopa. Escolhe duas cenouras e quatro folhas de couve lombarda. Junta tomate.

-Não há feijão? – grita da cozinha.
-Na despensa. – responde a Leonor.

Arruma melhor as mercearias na despensa que Leonor, na véspera, colocou caoticamente nas prateleiras. Lava a louça à mão. Enxagua o último prato e repara que a pia ainda não escoou a água toda. Procura um desentupidor no armário. Mas o chão já está todo alagado. Logo chama a brigada de salvamento.

- VP! VEM CÁ DEPRESSA!

VP, ainda demora a responder ao apelo. Qual dom Quixote, aparece na cozinha sem o cavalo e sem a lança. Leonor corre atrás e desesperada diz "oh não" e imediatamente foge. Ana e VP arregaçam mangas e calças.

- Tira tudo do armário. – diz ele.

Ana tira para um canto da cozinha uma catrefada de detergentes para a louça, para o chão, para os vidros lisos, para vidros foscos, para as gorduras mais leves, para as gorduras mais incrustadas.

- Já está. - diz ela.

- Agora tira a porta do armário. – continua ele.

Ana abespinha-se perante tanta ordem impávida e serena. Leonor, ligeiramente longe, ligeiramente perto lembrou-se do tio Podge do romance “Três homens num bote” de Jerome K. Jerome, . que para pregar um quadro numa parede punha a família toda em movimento: um ia buscar o escadote, outro o prego, outro o martelo e o tio Podge só martelava.

- E tu fazes o quê? – perguntou Ana de nariz empinado e mãos na cintura numa atitude desafiadora, opondo-se à totalidade da tarefa.

- Eu desentupo o cano.

Ana, espera com um pé numa indecifrável desconfiança o desenrolar dos acontecimentos. Leonor vagueando por ali, ligeiramente perto , ligeiramente longe roi as unhas.

Um arame mágico, comprido, com uma manivela na ponta foi entrando, rodando lentamente pelo cano abaixo.

- Ah, isto parece que já encontrou qualquer coisa. Não há p’ra aí um desentupidor de canos?

- Não. Já estive a ver. Mas vejo aqui ácido nítrico.

- Deitamos um bocado.

- Vocês vão matar os peixes! – diz a Leonor.

- Palavra d’honra. – exclama o VP apanhado no meio de um dilema ecológico.

- Tens de escolher. – diz a Ana – ou os peixes ou a cozinha alagada.

- Deita só um bocadinho.

- Claro, a quantidade do produto diminui a tua culpa. Então e os detergentes que usas na roupa e na louça, e o shampoo e o óleo do peixe que deitas fora…!!??

- Deita só um bocadinho.

Deitou-se um bocadinho de ácido no cano. Um minuto de silêncio pela morte dos peixes do Tejo e de todos os peixes do mundo foi feito pelas duas naquele momento. O silêncio do VP tinha um propósito mais imanente: o sucesso do frete. De repente, do cano veio um som cavernoso que parecia vindo do fundo das catacumbas de um cemitério, deixando-os a todos petrificados por um espanto de olhos esbugalhados e garganta afónica.

Passada a borra cromática e fétida beberam Porto pela garrafa para esquecerem lembranças de Poltergeist. Ana ria e Leonor já vagueava por ali ligeiramente perto.
Lá, nos romances que lia e nas ficções que escrevia nunca havia compras para arrumar, sopas para fazer e muito menos canos entupidos.

Da Leonor

30 Comments:

Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querida Leonor

A tua imaginação não “conhece “ limites! E ainda bem!!! Porque nos presenteias com estas histórias do real - braço dado com a ficção de uma escrita perfeita.

Leonor e Ana uma dupla perfeitamente imbatível

Beijos com muito carinho

Bfs

1:44 PM  
Blogger José Gomes said...

Leonor e Ana, a dupla mais famosa da blogesfera!
História bem arquitectada com um tom de humorismo sádico, não pela água que inunda a cozinha, mais pelo assassinato doa peixes pelo VP com ácido...
Não tenham remorsos!
Há mais ataques ecológicos sem sequer pensar nas criaturas visadas...
É o risco do dia a dia, neste mundo globalizado.
Parabéns Ana/Leonor...
Bom fim de semana.

5:18 PM  
Anonymous Anonymous said...

Que trabalheira sem contabilizar os pobres peixes!..Bom Fim de Semana

9:50 PM  
Blogger saltapocinhas said...

Com duas mulheres em casa e vai o homem arranjar o cano! Ai as feministas! Adorei a tua história anterior. Também ouço assim muitas histórias. Uma vez trabalhei numa escola onde aprendi a conhecer uma data de pássaros pelo canto ou pelo ninho ( a escola era à beira de um pinhal, quando os dias estavam lindos íamos fazer o recreio para o pinhal...)
Ainda vais ter muitas saudades da Jessica e companhia, embora te deva custar bastante estar afastada de casa!

11:04 PM  
Anonymous Anonymous said...

Leonor!
Excelente texto, onde mais uma vez demonstras todo o teu à vontade no dominio das palavras!
Um grande beijinho,

11:17 PM  
Blogger António said...

Minha querida Leonor!
Este é, seguramente, um dos teus textos mais trabalhados que li.
A linguagem e o estilo estão altamente refinados.
Continuo a considerar que a Ana é o alter ego da Leonor.
E assim, todo o texto ganha uma grandíssima riqueza.
Obra de autor, diria.

Obrigado pela tua visita.
Cá para mim não há programas nem destinos nem fados.
É tudo caos e acaso.

Beijinhos

11:47 PM  
Blogger Lya said...

olá... passei por aki e n kis me ir embora sem deixar um comentario a dizer k achei o teu blog nice!
jokas

8:43 AM  
Anonymous Anonymous said...

Na parte lúdica confesso que me fizeste rir, mau grado a morte de peixes...A tua "arte" na escrita é fabulosa...flui com naturalidade, com meiguice...Parabéns e beijinhos

12:47 PM  
Blogger A .Carlos said...

Delicioso Leonor
Simplesmente delicioso, desde a azáfama da Ana, á calma decidida do VP e ao aparente "ar" alheio de Leonor...
Delicioso Leonor
uma óptima semana para ti
bjs
:)

4:38 PM  
Blogger lena said...

Leonor, encantas-me e fico surpreendida com a tua excelente imaginação e talento, tanta riqueza junta onde a Leonor e a Ana têm o papel principal

Que bem escreves menina

beijinhos meus

lena

7:41 PM  
Blogger Eva Shanti said...

Depois da tempestade a bonança: «Passada a borra cromática e fétida beberam Porto pela garrafa para esquecerem lembranças de Poltergeist»

Lindo!

Bjs

10:25 AM  
Blogger th said...

Inteligente o recurso a uma Ana para os trabalhos mais desgastantes e um VP dá muito geito nestas ocasiões...lol
O relato está muito bem conseguido, ter juntado o real com o imaginário é de mestre.
Beijoka, th

12:08 PM  
Blogger augustoM said...

Têm de tomar cuidado não vá um dia o poltergeist sair do cano e puxá-las lápara dentro. Coitado além de encorralado ainda por cima tem de levar com ácido nìtrico.
Um beijo. Augusto

1:36 PM  
Blogger Night said...

hehe mais uma historia muito interessante, gostei. beijinhos

3:00 PM  
Blogger batista filho said...

Leonor, um beijo saudoso, amiga.
Tudo bem, por cá. Próxima semana retornarei.
Lerei tudo, tim-tim por tim-tim! não perderei nada do que escreveste!!!
Um abraço no VP.
Inté.

3:26 PM  
Blogger Henrique Santos said...

Bela lição de culinária... e como é perigoso lidar com um cano entupido! Fica tudo em perigo, até os peixes... A Betty tem razão a tua imaginação leva-nos para uma cozinha de tal forma alagada que
te lembraste do tio Podge...
Depois duma curta ausência por ter tido uma agenda carregada - avô, sabes avô é fogo... e muit'a bom!- aqui estou a tentar arrumar a minha bagunça provocada pelo atrazo... e, não tenho brigada...
Bjinhos Ricky

4:00 PM  
Anonymous Anonymous said...

Essa da dupla personalidade dá um jeitão. Eu passo até por triplas e por vezes até triplas ao cubo, tentando uma vã fuga à única e real, aquela que me lança nas garras da desgraça garantida.
Fui eu o assassino ecológico, fui eu que fiz com que alguns cardumes de ranhosas taínhas tivessem virado os olhos ainda mais em branco que os meus. Isto de ouvir um cano arrotar sons tenebrosos, vê-lo expelir uma medonha nuvem amarela que mergulhou a cozinha noutra dimensão, mais própria dos lúgubres caminhos do purgatório, não me deixava propriamente disposto a preocupar-me com os escamóides abarbatanados. E me tivessem eles aparecido à frente nesse fim de tarde a fazerem bolhinhas e teriam passado a peixes-voadores atordoados pelas chapadas catapultantes.
Foi um litro, inteirinho, de ácido nítrico, mais meio de sulfúrico concentrado, ajudado por água a ferver...O cano regurgitou fantasmagoricamente. Meteu medo. Mas meteu mesmo. Mas foi trigo-limpo...

VP

9:16 PM  
Anonymous Anonymous said...

LEONOR!!!!!!!!!!!!!!Diz ao VP para passar na Rua dos Barbosas, pls! Eu no fim sirvo um Porto, faço uma tarte de maçã, mas ele que venha!

Adorei ler-te!

Beijos grandes(um pouco entupidos que este frio não está para brincadeiras e a constipação conquistou a casa e o pessoal)

Muito boas estas histórias da "casa da Leonor no seu melhor" : )

10:37 PM  
Blogger Que Bem Cheira A Maresia said...

Essas duas devem dar que fazer ao VP, mas eu acho-as adoráveis!

Beijokas gordas da Lina

12:42 AM  
Anonymous Anonymous said...

Uma história genial do quotodiano, mas onde esse mesmo quotodiano se cruza com o imaginário.
Não só gostei, como ainda me ri.. :)
Bjs e boa semana

4:21 PM  
Blogger Astri* said...

Querida Leonor.. LOLOL mas que boa aventura vai para aí.. LOL :X
Apreciei bastante este texto :D gosto desta tua criatividade..

beijinho no coração ******

9:48 PM  
Anonymous Anonymous said...

Uma boa história que, apesar de tudo, poderia ser uma situação perfeitamente real...
Mas cuidado com o ácido nítrico, altamente corrosivo e além de matar os peixinhos do Tejo poderia derreter os materiais... LOL...
Mas foi só uma pequena observação...
Um Abraço,

10:15 PM  
Blogger Mocho Falante said...

olha está liiindo. So tu poderias escrever uma coisa assim!!!!! Brilhante. E o que eu ri com este texto valeu pela noite blogoesférica

Beijocas

11:15 PM  
Blogger «« said...

adoro esssa musica...já não a ouvia há montes de tempo

11:24 PM  
Blogger Rui Azul said...

Bravo! Absolutamente deliciosas, as tuas "short stories". Ah! Perdão, não me apresentei: Rui Azul, um seu (já) admirador. Apesar de me expressar habitualmente através de um tubo amarelo com botões que costumam designar por saxofone, ou por penas, lápis, tintas e similares, volta e meia também me dá para escrever contos curtos. Se tiveres paciência e tempo, podes ver, ler e ouvir aquilo que me vai saindo em http://registosautonomos.blogspot.com
Gostava imenso saber as tuas impressões acerca do que lá "postei", ou das músicas que podes "downloadar" (desculpa estes neologismos informáticos...).
Descobri-te através do blog dum cubano que toca comigo (salsapica).
Parabéns pela tua excelente inventividade.
Until later on (I hope...)

12:40 AM  
Blogger António said...

Minha querida Leonor!
No teu comentário escreveste:
"Oh António... tens qualquer coisa do sarcasmo do Eça..."
Deixaste-me arrasado, prostrado...porque eu acho o Eça um Deus da escrita!
Não me digas mais dessas que eu ainda me convenço!

Beijinhos

10:46 PM  
Blogger Daniel Aladiah said...

Querida Leonor
Como uma simples tarefa se pode transformar num quase enredo? Porque tens a arte de contar histórias...
Um beijo
Daniel

1:14 AM  
Blogger saisminerais said...

Hoje tomei o teu blog de assalto, vim ás escondidas até aqui para te ler um cadito, afinal ja tinhas era mesmo muito para ler, e fui ficando e ficando e lendo e gostando, neste poste só te digo que gostava de ser mosca e estar lá a observar vocês. Assim, como isso seria mais um filme de ficção, essa de eu ser mosca com 95 quilos, ainda bem que retratas o ocorrido com uma perfeição que até consigo imaginar.
lindo, e agora vou passar ao poste seguinte... encontras-me lá de novo, até jáaaaaa

1:20 PM  
Anonymous Anonymous said...

Situação complicada, como sempre acontece com entupimentos ou fugas de agua em apartamentos, mas a equipa tecnica que acorreu para resolver esta dificuldade, esteve brilhante na sua resolução, não só no trabalho de equipa como nos cuidados com o meio ambiente, portanto uma operação de sucesso, com a Leonor a assistir, mas a distancia que não comprometa o curso dos trabalhos.

JMC

1:57 PM  
Blogger A .Carlos said...

Olá Leonor,
e...um óptimo fim de semana para Ti
bjs
:)

12:27 AM  

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