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Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Saturday, October 14, 2006

“Patiu-che” as patas


Quando chego a uma turma no inicio do ano lectivo ainda trago na cabeça os miúdos do ano que acabou há dois meses atrás. Cruelmente, os dias, um a um, substituem os miúdos anteriores pelos novos. Porém, alguns ficarão para sempre na minha recordação, por frases, por gestos feitos, pelos seus temperamentos mais diferenciados que a massa homogénea da turma.

Apanhei no meu primeiro ano de trabalho, numa escola no Alto de São João, em Lisboa, um 2º ano excelente que vinha muito bem preparado do 1º ano pela colega que me antecedeu. Na altura não tive essa noção. Hoje tenho-a devido às diferentes turmas que já leccionei.

Lembro-me de quase todos eles mas, particularmente, da Vera. A Vera era uma menina tímida, muito feminina, pequenina, magrinha, vaidosa mas discreta, sempre bem vestida. Tinha uns cabelos castanhos compridos lisos que lhe davam pela cintura e a sua franja estava sempre cuidadosamente bem aparada junto às sobrancelhas.

Sentava-se na mesa em frente à minha secretária e tinha uma deficiência na fala a que os professores na sua gíria designam por “sopinha de massa”. A Vera não almoçava na cantina da escola. Almoçava em casa. E todos os dias, quando voltava do almoço depositava em cima da minha secretária uma flor. Papoilas, margaridas, amores perfeitos… sem nunca dizer nada. Onde ela apanhava as flores não sei. Nunca lhe perguntei. Vinha sempre acompanhada de um cãozinho de peluche, outrora branco, preso por uma trela, arrastando-o pelo chão, à semelhança de um cão que tinha rodas e ladrava e que era grande moda na altura.

Antes de sentar-se, a Vera colocava a flor na minha secretária e, logo de seguida, ajeitava o cão muito quietinho no chão junto à perna da mesa, prendendo a trela na mesa com o estojo dos lápis não fosse o brinquedo fugir, enquanto ela se concentrava na aula.

Eu não permito brinquedos na aula, mas como proibir o cãozinho da Vera que se portava tão bem perante o seu olhar atento e doce? Um dia, a Vera deposita a flor, como sempre, no mesmo sítio mas não traz o cão.

- O cão?! – perguntei-lhe admirada.
- Patiu- che as patas. – respondeu ela muito consciente de que nada dura para sempre, sentando-se para continuar a aula.

Pudera! Ainda muito resistiu o brinquedo a tamanhos trambolhões.



Da Leonor

27 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Que será feito da Vera?, provavelmente hoje, estutante universitária, quanto ao Cão, não restam grandes duvidas.
As vezes tambem me lembro de histórias passadas, não só, pelo simples facto de que se está a passar na altura algo de semelhante, mas tambem porque me lembro dos intervenientes.

Bom fim de Semana.

JMC

9:03 AM  
Blogger António said...

Querida Leonor!
Que ternura de texto escreveste desta vez!
Se calhar já escreveste muitos assim, mas como não tens falado dos teus "pintaínhos" a gente até se esquece de quão terna sabes ser quando a eles te referes.
Gostei muito!
Obrigado pelo teu comentário lá na minha casa.
Em relação ao teu último parágrafo apetece-me repetir o povão:
"Ninguém está bem com a vida que tem".
eh eh
A propósito das telenovelas, deixa-me dizer-te que também comecei por as ver de fio a pavio.
A certa altura, dei por mim viciado.
Isto não pode continuar assim! - disse para comigo.
E fui matricular-me num curso de inglês que começava logo após o jantar.
E assim se acabou o vício...
Mais tarde vi uma ou duas, mas há muitos anos que não vejo nenhuma.
Não sei se tem ou não tem qualidade.
Sei que tem um defeito muito grande: são viciantes...e isso é muito mau!
Volta sempre!

Beijinhos

9:20 AM  
Blogger A Professorinha said...

Os miúdos nessas idades são tão queridos... ainda me lembro de ir muitas vezes para a escola com a minha mãe quando era mais nova (mas mais velha que eles) e adorar vê-los tão queridos com as cabecinhas inclinadas sobre o caderno. ainda hoje os alunos que eu mais gosto de ter são os do 7º ano porque são muito queridos.

Mas depois também têm um lado infantil de conversar muito e não saber estar que muitas vezes me desespera...

Beijos

9:33 AM  
Anonymous Anonymous said...

Olá Leonoretta,
Obrigada por me "ofereceres" um principio de fim de semana tão repleto de ternura.

Beijinhos
Ana Joana

11:16 AM  
Blogger SilenceBox said...

Querida leonoretta, é cada vez mais que anseio pela chegada do Sabado, para ler mais um texto teu!!! Um episódio tão ternurento sobre a aluna Vera, deixou-me comovida. És uma professora excepcional e de grande coração, não me cansarei de repetir isto! Cativas-me imensamente! Um abraço carinhoso e cheio de admiração

11:49 AM  
Blogger Daniel Aladiah said...

Querida Leonor
As crianças são sempre um manancial de boas histórias, que tu contas como ninguém.
Um beijo
Daniel

10:10 PM  
Blogger Leonor said...

PARA JMC

a vera? nunca mais a vi. aliás, nunca mais nenhum dos meus alunos que tive até agora. vou sempre para sitios diferentes, embora na mesma cidade, á excepção do ano passado, onde as pessoas de um sitio nao se cruzam noutro.

a memória... a nossa vivencia... o que nos constroi.

abraço da leonoreta

10:11 PM  
Blogger Leonor said...

PARA ANA JOANA

que bom. saber que o teu fim de semana começa bem por leres o que escrevo. que bom foi teres dito isso tambem.

beijinhos da leonoreta

10:12 PM  
Blogger Leticia Gabian said...

Que gracinha, Leonor! Adorei!
Bem madura a Vera, não? Passou pela perda do "patiu-che" com muita tranquilidade.
Também tenho algumas poucas lembranças da minha época em que lecionava. É uma experiência muito enriquecedora, cheia de trocas.
Beijinho pra ti, querida.

10:57 PM  
Blogger Cristina Sousa said...

Olá minha linda :-)))

Há muito que não passava por aqui, mas é sempre gratificante ler-te.
Beijinho grande e bom fim de semana.
Cris

11:51 PM  
Blogger Luna said...

São essas historias que vão semeando as nossas vidas de sensibilidade, e tentarmos aprender com as crianças o significado puro que dão aos momentos da vida
beijinhos

12:01 AM  
Blogger Leonor said...

PARA CRISTINA

assim de repente... apanhaste-me.
pensei que fosse outra cris. mas o minha linda é só teu.

gosto da foto

beijinhos da leonoreta

3:09 PM  
Blogger Sr. Jeremias said...

O que será feito hoje da vera? Será que vai passar por aqui e ler o que escreveste dela?

Gostei da história :)

6:17 PM  
Blogger . said...

Tão Lindo... :)

9:50 PM  
Blogger batista filho said...

... e "patiu-me" de emoção a ternura e o humor sadio que colocas em tuas recordações, amiga!

devido à escassez do tempo, rareiam as visitas, mas não a alegria que sinto de te visitar, Leonor.

Deixo o meu abraço fraterno, extensivo ao VP.

1:25 AM  
Blogger augustoM said...

Leonor, o brinquedo é o primeiro amor das crianças, ainda me lembro bem dos meus, especialmente uns três, por tão desejados que foram, ainda hoje me lembro perfeitamente deles e na alegria da sua posse.
Hoje esse amor desvaneceu-se, na quantidade, como se esta fizesse as crianças mais felizes.
Continuas a ser a munha professora preferida.
Um beijo. Augusto

1:52 PM  
Blogger Barão da Tróia II said...

Bonito o texto, boa semana.

2:13 PM  
Anonymous Anonymous said...

E a mim "patiu-che" o meu coração pela perda do "canito".
Há coisas que nunca se esquecem, é bem verdade.
Mais um doce que nos ofereceste. Beijos

3:43 PM  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querida Leonor

Tanta ternura - nesta tua arte de contar:) e de encantar:)

Beijinhos com muito carinho

BoaSemana

4:47 PM  
Blogger Maria Carvalho said...

Uma doçura...Beijos.

8:41 AM  
Blogger Nilson Barcelli said...

As tuas histórias são sempre saborosas.
Esta é mais uma, bem contada e com muita ternura.
Não me canso de dizer. és uma profeshora do carachas...
Beijos.

8:51 PM  
Anonymous Anonymous said...

Patiu-che...
E já não tinhas quem te guardasse a aula....

Uma boa semana - fazes greve?

10:00 PM  
Blogger Mocho Falante said...

ora viva...cá estou eu de volta a terras da Lusitania...e mais uma história que jamais irás esquecer...apesar de tudo a vida de professor está cheio de histórias bonitas

beijocas

10:24 AM  
Blogger António said...

Querida Leonor!
Venho agradecer a tua visita e comentário à parte V de "Uma família burguesa" (por acaso já lá está a parte VI).
E parece que já valeu a pena teres lá ido: vais reler "A insustentável leveza do ser".

Beijinhos

9:00 AM  
Blogger Aldina Duarte said...

Acredito que com tanta beleza, ternura e interesse se possa amar uma profissão entre os maiores amores!

Até sempre!

2:22 PM  
Blogger APC said...

Madura e suficientemente descentrada e consciente do real: o cãozinho não se magoara, o brinquedo estragara-se... Uma viragem que o incidente terá acelerado, mas a que Vera se adaptou na perfeição... Miminho de gente, essa menina! Miminho de texto, este teu. Deixa um sorriso terno dentro da gente.
Se a Vera soubesse o que lhe recordas...! :-)
Um beijinho.

2:15 AM  
Blogger Zé-Viajante said...

Um texto de ternura...

3:03 PM  

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