“Patiu-che” as patas
Quando chego a uma turma no inicio do ano lectivo ainda trago na cabeça os miúdos do ano que acabou há dois meses atrás. Cruelmente, os dias, um a um, substituem os miúdos anteriores pelos novos. Porém, alguns ficarão para sempre na minha recordação, por frases, por gestos feitos, pelos seus temperamentos mais diferenciados que a massa homogénea da turma.
Apanhei no meu primeiro ano de trabalho, numa escola no Alto de São João, em Lisboa, um 2º ano excelente que vinha muito bem preparado do 1º ano pela colega que me antecedeu. Na altura não tive essa noção. Hoje tenho-a devido às diferentes turmas que já leccionei.
Lembro-me de quase todos eles mas, particularmente, da Vera. A Vera era uma menina tímida, muito feminina, pequenina, magrinha, vaidosa mas discreta, sempre bem vestida. Tinha uns cabelos castanhos compridos lisos que lhe davam pela cintura e a sua franja estava sempre cuidadosamente bem aparada junto às sobrancelhas.
Sentava-se na mesa em frente à minha secretária e tinha uma deficiência na fala a que os professores na sua gíria designam por “sopinha de massa”. A Vera não almoçava na cantina da escola. Almoçava em casa. E todos os dias, quando voltava do almoço depositava em cima da minha secretária uma flor. Papoilas, margaridas, amores perfeitos… sem nunca dizer nada. Onde ela apanhava as flores não sei. Nunca lhe perguntei. Vinha sempre acompanhada de um cãozinho de peluche, outrora branco, preso por uma trela, arrastando-o pelo chão, à semelhança de um cão que tinha rodas e ladrava e que era grande moda na altura.
Antes de sentar-se, a Vera colocava a flor na minha secretária e, logo de seguida, ajeitava o cão muito quietinho no chão junto à perna da mesa, prendendo a trela na mesa com o estojo dos lápis não fosse o brinquedo fugir, enquanto ela se concentrava na aula.
Eu não permito brinquedos na aula, mas como proibir o cãozinho da Vera que se portava tão bem perante o seu olhar atento e doce? Um dia, a Vera deposita a flor, como sempre, no mesmo sítio mas não traz o cão.
- O cão?! – perguntei-lhe admirada.
- Patiu- che as patas. – respondeu ela muito consciente de que nada dura para sempre, sentando-se para continuar a aula.
Pudera! Ainda muito resistiu o brinquedo a tamanhos trambolhões.
Da Leonor
27 Comments:
Que será feito da Vera?, provavelmente hoje, estutante universitária, quanto ao Cão, não restam grandes duvidas.
As vezes tambem me lembro de histórias passadas, não só, pelo simples facto de que se está a passar na altura algo de semelhante, mas tambem porque me lembro dos intervenientes.
Bom fim de Semana.
JMC
Querida Leonor!
Que ternura de texto escreveste desta vez!
Se calhar já escreveste muitos assim, mas como não tens falado dos teus "pintaínhos" a gente até se esquece de quão terna sabes ser quando a eles te referes.
Gostei muito!
Obrigado pelo teu comentário lá na minha casa.
Em relação ao teu último parágrafo apetece-me repetir o povão:
"Ninguém está bem com a vida que tem".
eh eh
A propósito das telenovelas, deixa-me dizer-te que também comecei por as ver de fio a pavio.
A certa altura, dei por mim viciado.
Isto não pode continuar assim! - disse para comigo.
E fui matricular-me num curso de inglês que começava logo após o jantar.
E assim se acabou o vício...
Mais tarde vi uma ou duas, mas há muitos anos que não vejo nenhuma.
Não sei se tem ou não tem qualidade.
Sei que tem um defeito muito grande: são viciantes...e isso é muito mau!
Volta sempre!
Beijinhos
Os miúdos nessas idades são tão queridos... ainda me lembro de ir muitas vezes para a escola com a minha mãe quando era mais nova (mas mais velha que eles) e adorar vê-los tão queridos com as cabecinhas inclinadas sobre o caderno. ainda hoje os alunos que eu mais gosto de ter são os do 7º ano porque são muito queridos.
Mas depois também têm um lado infantil de conversar muito e não saber estar que muitas vezes me desespera...
Beijos
Olá Leonoretta,
Obrigada por me "ofereceres" um principio de fim de semana tão repleto de ternura.
Beijinhos
Ana Joana
Querida leonoretta, é cada vez mais que anseio pela chegada do Sabado, para ler mais um texto teu!!! Um episódio tão ternurento sobre a aluna Vera, deixou-me comovida. És uma professora excepcional e de grande coração, não me cansarei de repetir isto! Cativas-me imensamente! Um abraço carinhoso e cheio de admiração
Querida Leonor
As crianças são sempre um manancial de boas histórias, que tu contas como ninguém.
Um beijo
Daniel
PARA JMC
a vera? nunca mais a vi. aliás, nunca mais nenhum dos meus alunos que tive até agora. vou sempre para sitios diferentes, embora na mesma cidade, á excepção do ano passado, onde as pessoas de um sitio nao se cruzam noutro.
a memória... a nossa vivencia... o que nos constroi.
abraço da leonoreta
PARA ANA JOANA
que bom. saber que o teu fim de semana começa bem por leres o que escrevo. que bom foi teres dito isso tambem.
beijinhos da leonoreta
Que gracinha, Leonor! Adorei!
Bem madura a Vera, não? Passou pela perda do "patiu-che" com muita tranquilidade.
Também tenho algumas poucas lembranças da minha época em que lecionava. É uma experiência muito enriquecedora, cheia de trocas.
Beijinho pra ti, querida.
Olá minha linda :-)))
Há muito que não passava por aqui, mas é sempre gratificante ler-te.
Beijinho grande e bom fim de semana.
Cris
São essas historias que vão semeando as nossas vidas de sensibilidade, e tentarmos aprender com as crianças o significado puro que dão aos momentos da vida
beijinhos
PARA CRISTINA
assim de repente... apanhaste-me.
pensei que fosse outra cris. mas o minha linda é só teu.
gosto da foto
beijinhos da leonoreta
O que será feito hoje da vera? Será que vai passar por aqui e ler o que escreveste dela?
Gostei da história :)
Tão Lindo... :)
... e "patiu-me" de emoção a ternura e o humor sadio que colocas em tuas recordações, amiga!
devido à escassez do tempo, rareiam as visitas, mas não a alegria que sinto de te visitar, Leonor.
Deixo o meu abraço fraterno, extensivo ao VP.
Leonor, o brinquedo é o primeiro amor das crianças, ainda me lembro bem dos meus, especialmente uns três, por tão desejados que foram, ainda hoje me lembro perfeitamente deles e na alegria da sua posse.
Hoje esse amor desvaneceu-se, na quantidade, como se esta fizesse as crianças mais felizes.
Continuas a ser a munha professora preferida.
Um beijo. Augusto
Bonito o texto, boa semana.
E a mim "patiu-che" o meu coração pela perda do "canito".
Há coisas que nunca se esquecem, é bem verdade.
Mais um doce que nos ofereceste. Beijos
Querida Leonor
Tanta ternura - nesta tua arte de contar:) e de encantar:)
Beijinhos com muito carinho
BoaSemana
Uma doçura...Beijos.
As tuas histórias são sempre saborosas.
Esta é mais uma, bem contada e com muita ternura.
Não me canso de dizer. és uma profeshora do carachas...
Beijos.
Patiu-che...
E já não tinhas quem te guardasse a aula....
Uma boa semana - fazes greve?
ora viva...cá estou eu de volta a terras da Lusitania...e mais uma história que jamais irás esquecer...apesar de tudo a vida de professor está cheio de histórias bonitas
beijocas
Querida Leonor!
Venho agradecer a tua visita e comentário à parte V de "Uma família burguesa" (por acaso já lá está a parte VI).
E parece que já valeu a pena teres lá ido: vais reler "A insustentável leveza do ser".
Beijinhos
Acredito que com tanta beleza, ternura e interesse se possa amar uma profissão entre os maiores amores!
Até sempre!
Madura e suficientemente descentrada e consciente do real: o cãozinho não se magoara, o brinquedo estragara-se... Uma viragem que o incidente terá acelerado, mas a que Vera se adaptou na perfeição... Miminho de gente, essa menina! Miminho de texto, este teu. Deixa um sorriso terno dentro da gente.
Se a Vera soubesse o que lhe recordas...! :-)
Um beijinho.
Um texto de ternura...
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