Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Thursday, April 26, 2007

Fragmentos dela, dele e às vezes dos outros (8)

Por coincidência , sentaram-se em frente um do outro no transporte público. Num pequeníssimo momento cruzaram o olhar e conheceram-se. Ambos volveram trinta anos.
Trinta anos que o tempo transformou sentimentos de garotos impertinentes em memórias de adolescência perdida. Trinta anos ela procurou pela janela olhando o rio. Trinta anos ele procurou perdendo o olhar nas pessoas que iam ocupando o resto dos lugares.
Porque nunca se tinham suportado?

“Ela já não usa o cabelo encaracolado. Mas continua com aquele ar de nariz empinado”

“Tem o cabelo todo branco. Engordou. Bem, ele já era um pouco gordo”

“Será que ela ainda se lembra que eu era o filho do contínuo?”

“Tinha a mania que mandava na escola porque era filho do contínuo”


Agora ambos olhavam o rio e o horizonte pela janela do barco. Em soslaios captavam imagens fugidias um do outro. Rápidas para nenhum deles ver.

“Ainda sinto a canelada que ela me deu quando a tirei à força da fila do bar”

“Acho que foi a ele (foi?) que lhe dei uma canelada."

“O que será que ela faz agora? Suponho que nunca o saberei.”

“O que terá passado com ele nestes últimos trinta anos? Oh! O que me importa isso?"

Ambos tinham chegado ao destino. Saíram e seguiram caminhos contrários, provavelmente, por mais trinta anos.


da Leonor

24 Comments:

Blogger António said...

Querida Leonor!
Criativo, bem estruturado e com a pitada de humor habitual.
Excelente!
Gostei muito.

Beijinhos

7:32 PM  
Blogger SilenceBox said...

Leonoretta querida!
Como escreves tão bem, chego a dizer para os meus botões porque é que não escreves um Romance?!
Este texto, apesar de ter uma pitada de humor, é triste, porque é mesmo uma realidade...
Quero mais textos! =)
Um abraço e bom fim de semana!!

10:35 PM  
Blogger A.S. said...

Querida Leonor, uma canelada que "ele" não esquece ao fim de trinta anos... não foi uma canelada! Foi uma entrada a pés juntos!!! :)))
Devias ter visto o cartão vermelho!


Um beijo e bom fim de semana!

10:43 PM  
Blogger lena said...

Leonor, doce menina e minha querida amiga

trinta anos, uma vida, um olhar, um tempo, uma coincidência, uma mistura de sentimentos...

e uma calinada que durou 30 anos!

um destino e a somar certamente mais 30 anos...


vidas vividas. parece que passam ao lado, que se esquecem e de repente tudo passa à nossa frente como um filme. recordar como foi há 30, quando ainda sonhava de cabelos encaracolados...

tu fazes-me sonhar Leonor

escreves tão bem, com tanta criatividade que me deixas embriagada

a calinada se fosse minha era mesmo para não esquecer, acredita em mim.

excelente como sempre minha querida amiga

um abraço carregado de ternura, um abraço cheio de carinho e admiração, um abraço meu para ti que és especial

beijinhos para ti

lena

11:35 PM  
Anonymous Anonymous said...

Não. Perdoa-me mas não. Não há caneladas que façam 30 anos de dor. Não há agarrões que se façam marcos, por 30 anos. O vermelho dos cravos, os bruás das cargas, o foguetório de barricadas, até o cheiro a tinta fresca de stencils se escoa em 30 anos de adormecimento.

Não. 30 anos, 40 anos, 100 anos que se vivam. Dor mesmo, carne viva que o passar do tempo não esmoreceu, foi a canelada que ela não deu, o olhar frio que passou indiferente ao empurrão que nada mais foi que um revoltado e desajeitado clamor de atenção.

30 anos. O nariz empinado é (hoje) a máscara da falsa indiferença. Feita de olhar perdido no horizonte e de segurança superior escalada na memória dessa indiferença, centenas de vezes cavalgada como um rasto que se fez assinatura para o sempre.

Foram-se os caracóis, o brilho do olhar, a macieza da boca sonhada (e chorada tantas vezes chorada). Mas neste quociente de nadas, o resto, é a dor que ainda dói.
Não por ela, mas pela injustiça dos impossíveis, feitos eternos nas sementes do acaso.

2:17 AM  
Anonymous Anonymous said...

Pois, Leonor, não sei qual seria a minha reacção se por acaso reconhecesse alguem que não visse à 30 anos, não sei se falaria primeiro e pensava depois, se não falava e pensava só ou se daria a iniciativa a outra pessoa, acho que nesse primeiro contacto visual se daria uma reacção em cadeia de sentimentos, emosões, que neste momento não consigo imaginar.

Bom fim de semana.

JMC

12:07 PM  
Blogger José Gomes da Silva said...

Uma delícia, Leonor!

Beijinhos

1:27 PM  
Blogger Paula Raposo said...

Um fragmento de todos nós maravilhosamente bem descrito! Beijos.

3:37 PM  
Blogger sonhadora said...

Um bom fim de semana.
Beijinhos embrulhados em abraços

10:32 PM  
Blogger Zé-Viajante said...

Fez-me lembrar uma historia antiga, esta com mais de 40 anos.
Mas mais 40? Nem pensar!
Bom fim de semana com um abraço

7:24 AM  
Blogger Isamar said...

Boa canelada! Trinta anos depois ainda se lembram dela. Ambos!Bela história,Leonor!Contada com condimentos vários que acabaram por dar-lhe uma pitada de humor.
Narrativa curta, interessante, que relata uma situação por que muitos passámos quando, meninos e adolescentes, frequentávamos a escola.
Às vezes ainda apetece fazer o mesmo a quem não respeita ordeiramente uma fila.
Bom domingo! Beijinhos, Leonor!

2:05 PM  
Blogger Rui Fartura. said...

uma vénia para o que escreves =)

3:31 PM  
Blogger augustoM said...

Quando o presente pretende ser um reflexo da memória do passado, a vida muitas vezes embacia o espelho, e ele esbate-se em pressupostos, cujos contornos só nós os identificamos.
Um beijo. Augusto

7:23 PM  
Blogger Daniel Aladiah said...

Querida Leonor
Sinal de que pelo menos 30 anos passaram... que arrepio! E foi ontem que brincavamos ao eixo...
Um beijo
Daniel

10:41 PM  
Anonymous Anonymous said...

Olá, Leonor
Volvidos trinta anos, não se lembraram de algo mais profundo?
Uma canelada? Mandar na escola porque era filho contínuo?
Se os temas eram esses, acho que não perderam grande coisa em reencontrar-se, será?
Quanto ao texto, bem escrito.

Bjs

11:34 PM  
Anonymous Anonymous said...

Mais um fragmento que me resigna.
Por vezes no metro, com a paisagem tão negra, pergunto-me será que a Leonor tem razão?
Depois de um túnel que dá para a ponte que atravessa o rio, a paisagem abre-se e com ela dissipam-se as dúvidas.
1 Abraço

7:53 PM  
Blogger Leonor said...

PARA ANONIMO

abordou um aspecto sobre o qual nao tinha pensado ate aqui: a acçao nao realizada marca mais, dura mais na insatisfaçao da alma que a realizada.
interessante tema a desenvolver.
abraço da leonreta

12:45 PM  
Blogger Leonor said...

PARA JMC

obrigado pela visita e comentario JMC. gosto sempre que passe por aqui e deixe o seu testemunho.
abraço da leonoreta

12:46 PM  
Blogger sonhadora said...

de cor, de palavras e de sonhos se faz a vida. Colhe lírios, abraça borboletas, respira Maio e degusta a liberdade.


S._________________________







Beijinhos embrulhados em abraços

1:06 PM  
Blogger Mocho Falante said...

Mais uma vez um texto de nos deixar deliciados...é sempre aqui no Ex Improviso

beijocas

7:23 PM  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querida Leonor

Voltei!:))

Muito obrigada pela tua nomeação - fico um pouco sem palavras_________-mas que as sinto é uma verdade.

Volto mais tarde para te ler e comentar

Beijinhos com muito carinho

12:12 AM  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Querida Leonor

São vidas que se [re]encontram apenas porque se "tocaram" tão fugazmente que nem se chegaram a cruzar num passado que morreu dentro dum tempo__________que não teve tempo de viver_________fragmentos que o vento leva para vários lugares__________onde os sentires não os reconhecem_________porque já não sentem________não têm memória

Adoro os teus fragmentos - melhor dizendo - toda a tua escrita.

Beijinhos com muito carinho

9:16 PM  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

This comment has been removed by the author.

9:19 PM  
Blogger APC said...

Magnífico, esse o toque!...
É... sentiu-se o toque, sim!

:-)

4:27 AM  

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