Varinha de Condão
As aulas acabaram. Agora começa o trabalho de “secretaria” até chegarem as férias propriamente ditas: fazer as avaliações; decidir em Conselho Escolar quem fica retido e quem transita de ano; fazer as matrículas para o próximo ano; preencher os papéis do rendimento mínimo para garantir aos miúdos de baixa condição económica livros gratuitos para o próximo ano, e mais mapas para fazermos os registos mais inúteis que houver para fazer.
Estava sozinha na minha sala, sentada à minha secretária a preencher as folhinhas das avaliações, quando alguém demasiado pequeno para os seus oito anos acabados de fazer, se assoma à porta, esboçando um ar de surpresa por me ver: óia a puchoia.
Reconheci a deficiência na fala. E levantei os olhos das folhas que preenchia para ver o miúdo de quem já morria de saudades.
- Olá Duarte. Estás bom? – saudei-o sorrindo.
O meu sorriso foi um convite para ele entrar pela sala dentro e vir até junto de mim. Mas mesmo que não tivesse sorrido ele teria entrado na mesma porque o Duarte é dos espíritos mais despojado de restrições que eu conheço.
- Ó puchoia… vais ficá aqui até ó fim da escoia?
- Vou.
E continuei a preencher fichas.
- Atão eu venho amanhã. Adeus puchoia.
E desapareceu antes que eu lhe agradecesse a visita e lhe retribuísse o adeus.
Ao longo de todo o ano lectivo, o Duarte nunca trabalhou como os colegas. Dotado de uma enorme desmotivação, um pouco conflituoso, não conseguia estabelecer um ritmo de trabalho constante. Facilmente se aborrecia do livro de leitura, do livro de matemática, de pintar o desenho… na leitura colectiva, baixava a cabeça e cerrava os dentes.
Algumas vezes adormeceu em cima da secretária… os colegas, vendo que eu apelava ao respeito pelas necessidades do colega, não importunavam.
E eu, simplesmente fazia o que o meu coração mandava, deixava o miúdo dormir, tentando entender que espécie de vida teria ele fora da escola que o levaria a um procedimento tão caprichoso e volúvel.
Tantas vezes cheguei a pensar que era eu…que a culpa era minha.
Mudou de lugar várias vezes, a seu pedido, ora sozinho, ora acompanhado… algumas vezes interessava-se por outras coisas que via na minha secretária e eu dava-lhe, dava-lhe tudo, só para lhe comprar um pouco daquele interesse sempre ausente.
Mas se eu me sentava junto dele, com livro, lápis, borracha e afia, e fizéssemos os exercícios um a um, ele já se interessava e trabalhava. Mas nem sempre eu podia sentar-me junto dele. Eu tinha uma turma inteira para orientar e, enquanto isso, o tempo ia passando e o Duarte não aprendia. Noções de leitura, escrita e aritmética precárias… conhecimento da realidade envolvente… reduzida.
Tentei sempre corrigir-lhe as palavras mal faladas - era a minha obrigação como professora - escrevendo-as no quadro e soletrando as sílabas. Mas ele sempre falou assim como se fosse um miúdo de três anos. E todos o percebíamos, e eu até achava graça.
Na feira do livro comprei uns livros engraçadíssímos a pensar no entusiasmo do Duarte. No dia seguinte, sentei-me junto dele, e coloquei os livros em cima da mesa. Ele abriu-os e riu-se. Quando abria as páginas uns bonecos tomavam forma em três dimensões. Á medida que íamos lendo, eu ia perguntando o significado das palavras.
- O que é uma fada?- perguntei-lhe.
- É uma pechoa boa.- respondeu-me.
- E o que é uma varinha mágica?
- É um pau que ela tem na mão c' uma estela na ponta.
- E para que serve?
- Seve pa fazê nachê coisas.
Serve para fazer nascer coisas!
Estava sozinha na minha sala, sentada à minha secretária a preencher as folhinhas das avaliações, quando alguém demasiado pequeno para os seus oito anos acabados de fazer, se assoma à porta, esboçando um ar de surpresa por me ver: óia a puchoia.
Reconheci a deficiência na fala. E levantei os olhos das folhas que preenchia para ver o miúdo de quem já morria de saudades.
- Olá Duarte. Estás bom? – saudei-o sorrindo.
O meu sorriso foi um convite para ele entrar pela sala dentro e vir até junto de mim. Mas mesmo que não tivesse sorrido ele teria entrado na mesma porque o Duarte é dos espíritos mais despojado de restrições que eu conheço.
- Ó puchoia… vais ficá aqui até ó fim da escoia?
- Vou.
E continuei a preencher fichas.
- Atão eu venho amanhã. Adeus puchoia.
E desapareceu antes que eu lhe agradecesse a visita e lhe retribuísse o adeus.
Ao longo de todo o ano lectivo, o Duarte nunca trabalhou como os colegas. Dotado de uma enorme desmotivação, um pouco conflituoso, não conseguia estabelecer um ritmo de trabalho constante. Facilmente se aborrecia do livro de leitura, do livro de matemática, de pintar o desenho… na leitura colectiva, baixava a cabeça e cerrava os dentes.
Algumas vezes adormeceu em cima da secretária… os colegas, vendo que eu apelava ao respeito pelas necessidades do colega, não importunavam.
E eu, simplesmente fazia o que o meu coração mandava, deixava o miúdo dormir, tentando entender que espécie de vida teria ele fora da escola que o levaria a um procedimento tão caprichoso e volúvel.
Tantas vezes cheguei a pensar que era eu…que a culpa era minha.
Mudou de lugar várias vezes, a seu pedido, ora sozinho, ora acompanhado… algumas vezes interessava-se por outras coisas que via na minha secretária e eu dava-lhe, dava-lhe tudo, só para lhe comprar um pouco daquele interesse sempre ausente.
Mas se eu me sentava junto dele, com livro, lápis, borracha e afia, e fizéssemos os exercícios um a um, ele já se interessava e trabalhava. Mas nem sempre eu podia sentar-me junto dele. Eu tinha uma turma inteira para orientar e, enquanto isso, o tempo ia passando e o Duarte não aprendia. Noções de leitura, escrita e aritmética precárias… conhecimento da realidade envolvente… reduzida.
Tentei sempre corrigir-lhe as palavras mal faladas - era a minha obrigação como professora - escrevendo-as no quadro e soletrando as sílabas. Mas ele sempre falou assim como se fosse um miúdo de três anos. E todos o percebíamos, e eu até achava graça.
Na feira do livro comprei uns livros engraçadíssímos a pensar no entusiasmo do Duarte. No dia seguinte, sentei-me junto dele, e coloquei os livros em cima da mesa. Ele abriu-os e riu-se. Quando abria as páginas uns bonecos tomavam forma em três dimensões. Á medida que íamos lendo, eu ia perguntando o significado das palavras.
- O que é uma fada?- perguntei-lhe.
- É uma pechoa boa.- respondeu-me.
- E o que é uma varinha mágica?
- É um pau que ela tem na mão c' uma estela na ponta.
- E para que serve?
- Seve pa fazê nachê coisas.
Serve para fazer nascer coisas!
Ah! Duarte, Duarte. Eu estava preocupada por não saberes os sons diferentes que o X tem nas palavras e tu dás-me uma das respostas mais lindas e, a única possível, que explica o desejo louco que todo o ser humano tem de possuir objectos mágicos: fazer nascer coisas, as coisas que não temos e que queremos.
Leonor
22 Comments:
Já vi que não sou só eu que tenho aquilo que eu chamo "neura da sala vazia".
Quanto ao Duarte infelizmente há tantos! E a nossa incapacidade ou vergonha ou sei lá o que é que nos falta para ter a coragem de ir a casa deles ver como vivem e como podemos ajudar...
Ao ser apresentada ao teu Duarte, não pude deixar de sentir aquela ternura que esses putos me inspiram e logo logo me lembrar da história "A Canoa" de Paulo Freire. Temos tanto que aprender com toda a gente! Que bom sabermos ouvir todos.
Beijinhos
Ana Joana
Oi...
Linda história...
Que tal começares a pensar compilar estas tuas vivências e publicá-las em livro???
Já está na altura de sair outro livro teu... não achas???
Beijokitas....
Muito fixe essa história...até eu fiquei um pouco emocionado, mas mudando o assunto um bocadinho, já estou há espera da minha nota do Exame Nacional de Matemática....que stress...
Ó puchoia!
Como tu contaxte tão bem exta histoia.
Goxtei muito, xim xinhoia
Xinhos
Minha Querida Leonor, e que bom saber que existem crianças que têm a sorte de ter na escola uma "puchoia" como tu.
Muito obrigada pela partilha desta história maravilhosa em que as diferenças caem por terra.
Diferentes somos todos.
Beijinho Encaracolado ~:o)
Bom, estou a ver que esta é a semana do mocho chorão... mocho sensibilis... que uma bela varinha de condão guie o Duarte e lhe faça nascer a felicidade
Querida Leonor
Agora muito trabalhinho te espera!!!
Depois "existem os Duartes" que compensam - com olhares ilumunados e respostas de contos de fadas e varinhas de condão (as que fazem nascer coisas)
Muita ternura e dedicação, é o que mostra este pequeno episódio, Senhora Professora!
Um beijo grande
mais uma historia amorosa, é bom ver que te lembras de todos os teus alunos e ate compras livros para eles... tens muito bom coração...
Beijocas*
:) sorrir, somente. muito. beijinho. J.
Quantos "Duartes" haverá neste país ?...
Suponha que tivesse e pudesse criar qualquer coisa para si mesmo, para outros, para o seu trabalho, para a sua comunidade, para o seu país, para o planeta.
Imagine que tem a Varinha de Condão mágica agora.
O que criaria ?...
É difícil escolher !... Não é ?!...
O Duarte encontrou uma fada,
que lhe trouxe um presente:
"um pau de ponta estrelada,
que o põe todo contente!
É dum mundo só dele,
criado na sua imaginação,
que lhe arrepia a pele,
e lhe consola o coração!
Pois, é uma fada conhecida,
professora de toda a vocação,
que amuitos marcará a vida,
e a nós nos dá suave consolação!
A tua varinha de condão,
Lianor que corres na verdura,
daquelas idades de formação,
é genial, efeito que perdura!
bjinhos Ricky, emocionado!
Querida Leonor
Aprendemos toda a vida e com todos sem excepção, não é verdade? Admirável a tua plasticidade pedagógica... és o paradigma de uma verdadeira orientação para o mercado (desculpa a linguagem técnica dos meus ofícios) na profissão que exerces. Acredito que os indicadores de eficácia da tua actividade são elevados, olhando ao tipo de audiência-alvo que tens nas aulas.
Um beijo
Daniel
Ufff, Leonor, já cá cheguei!!!
Subscrevo plenamente as palavras do Frog e gostaria de saber para quando novos livros (Isabel deu a deixa. E isso é um pouco a minha loucura!).
Este diálogo fez-me saltar a lágrima para o canto do olho:
- O que é uma fada?- perguntei-lhe.
- É uma pechoa boa.- respondeu-me.
- E o que é uma varinha mágica?
- É um pau que ela tem na mão c' uma estela na ponta.
- E para que serve?
- Seve pa fazê nachê coisas.
Leonor, este carinho que este miudo transportou para ti, é a maior recompensa para o teu papel de professora nesta sociedade que perdeu a fé nos valores.
Gostaria, realmente, de ter essa varinha na minha mão... faria mudar muita coisa e principalmente o destino de algumas pessoas.
Passa um bom fim de semana.
Que bom é poder viver com as crianças, poder partilhar as suas histórias, o seu falar, o seu pensar...th
Que bom é poder viver com as crianças, poder partilhar as suas histórias, o seu falar, o seu pensar...th
Ah, Leonor! Como sabem bem estas histórias que deixam calados os que ensinam e que tanto lhes fazem o coração bater de emoção!! Bom fim de semana! :)**
saltapocinhas
... e quantas vezes a noção de que se nos metermos ainda vamos agravar a situação.
Ana Joana
não conheço o livro de que falas mas brevemente...
Isa
estou a trabalhar nisso...
Jlbm
tu vê lá. mas olha, confia. vai correr tudo bem. se nao correr, voltaremos a conversar.
António
oia inda bem.
Caracolinha
"diferentes" somos todos. também penso assim.
Mocho
sensibilis, sempre, e racionalis de vez em quando. (racionalis? isso existe?)
Betty
dedicação tem sido a tua desde o meu primeiro post. obrigado.
Wolf
infelizmente, wolf, o tempo e as mudanças de escola fazem-me esquecer alguns... e é triste.
Rodolfo
sejas bem aparecido.eu sei, eu sei, tambem tenho que ir lá ver-te.
Filipe
fizeste uma pergunta tão dificil, mas muito boa para um post.
Ricky
que hei-de dizer-te? que gostei.
Daniel
corei de tanto orgulho. simplesmente.
Frog
tento ser isso tudo, tento, alguns percebem , outros não. e ai, terei de tentar melhor.
José
creio que todos gostariamos de ter essa varinha na mão. e como a usariamos? o poder, o querer e o dever, sao coisas muito complexas que nos obrigam a escolhas dificeis.
Theo
as crianças são o maximo e por estar com elas sou outra criança tambem
Cokas
dar aulas é muito melhor, de longe, que preencher a papelada. livra.nao sei onde coloco tantos papeis.
Fernanda
é muito bom o teu aluno vir ter contigo. e os que nao sao teus e que tambem te cumprimentam, então...já valeu a pena ter-me levantado de manhã.
Manuela
e tu, outra professora, também deves ter muitas histórias para contar.
abraço a todos da leonor
fiquei com uma vontade imensa de ver esse menino sentado a teu lado folheando o livro e respondendo às perguntas, fiquei com vontade de conhecê-lo:)
**
Leonoretta,
"A Canoa" é a história do barqueiro que atravessava as pessoas de um lado para o outro. Numa das viagens, iam um advogado e uma professora. O Advogado pergunta ao barqueiro: Você entende de leis? Não, respondeu o barqueiro. E o advogado compadecido: é pena, você perdeu metade da vida. A professora mto social entra na conversa e pergunta: sr. barqueiro, sabe ler e escrever? Também não, responde o barqueiro. Que pena! condoi-se a mestra. Você perdeu metade da sua vida! Nisto chega uma onda grande e vira o barco. O canoeiro preocupado pergunta: Vocês sabem nadar? Não, respondem eles. Então é uma pena - concluiu o barqueiro - Vocês perderam toda a vida" . Conclusão: " Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes"
(Paulo Freire)
Este menino tinha apenas a deficiência da fala? Ou era surdo?
Faz-me confusão… Se o Duarte ouvia bem e ouvia a sua própria voz, como é que pode falar assim?
Gostei muito deste post, irradia ternura e adorei a resposta do Duarte “serve fazer nascer as coisas”!
Parabéns por seres uma professora de coração!
Beijinho =)*
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