Tenho cinco pintainhos
Tenho uma turma de 23 alunos. 18 do 3º ano e 5 do 1º prontinhos a começar. Uns fizeram seis anos há poucos meses. Outros irão fazê-los agora em Dezembro. São cinco pintainhos. Uns esfarrapam-se a trabalhar. Outros esfarrapam-se a brincar.
Não é a primeira vez que tenho vários níveis na turma. Mas é a primeira vez que tenho o 1º ano assim tão pequeno a iniciar a aventura das letras.
Entre a correria do 3º ano que me diz constantemente “já fiz” e um 1º ano que agarra a minha camisola perguntando a cada letra que desenha no caderno “é assim?”, por vezes abstraio-me só num deles, esquecendo o outro completamente.
E foi num desses esquecimentos que eu não vi a Márcia a pintar as unhas.
A Márcia é um dos cinco pintainhos que se esfarrapa a trabalhar, juntamente com o Luís. Bem juntos à minha secretária ouço-lhes as conversas em surdina. Falam do campo, da catequese, do senhor padre, da mãe, dos patinhos que nasceram. Muito conscientes do seu dever trabalham enquanto conversam.
O Luís, uma vez por outra leva uma bola vermelha no caderno. A última foi por ter andado a correr atrás da Catarina, linda de morrer, juntamente com os colegas mais velhos da turma para lhe dar beijinhos na boca, segundo as queixas das meninas. Muito honestamente, levantou o braço quando perguntei pelos nomes dos perseguidores.
- Não acha que ainda é muito pequeno para olhar para a Catarina? – perguntei com um ar muito sério, treinado para impor respeito. Ninguém desconfia que me estou a rir.
- Não volto a fazer. - disse ele, de expressão solene.
Mas a Márcia tem levado sempre bola verde. Nem uma amarela consta do seu cadastro. Alertada por um dos rapazes mais crescidos, acordei para me dividir novamente entre duas classes. Tirei das mãos da menina o frasco do verniz e guardei-o na gaveta da minha secretária. Gritei-lhe uma bola vermelha e nada de intervalo no dia a seguir.
Retornei às leituras do 3º ano. Encostada ao meio do quadro vigiava, defraudada, os mais pequenos. A Márcia parou de trabalhar. De cabeça apoiada numa mão, triste, de pensamento lá longe, quebrava uma das regras da sala de aula: riscava a mesa com o lápis.
O Luís, muito carinhoso, consolava a amiga que partilhava com ele desabafos telúricos. “Oh Márcia, eu já lebei um bermeilho, bô pedir à professora para amanhã ficar aqui no interbalo contigo”. A Márcia continuava a riscar a mesa, aumentando os riscos à medida da sua tristeza.
Dirigi-me à minha secretária e de lá chamei a Márcia para conversar sobre a bola vermelha. Ao meu apelo, escondeu os olhos nas mãos em concha, começando um choro compulsivo.
Entre lágrimas espessas, baba e ranho, contou que não podia levar bola vermelha porque senão não ia ao casamento.
- Qual casamento?
- … o casamento de uma mulher, balbuciou no meio de um milhar, duas centenas e sete soluços.
Ai a minha vida. O que é que eu faço agora? Se eu tiro a bola… mas se eu não a tiro…
- Vamos tirar a bola do caderno. Mas o castigo mantém-se. - disse eu.
Ela tinha feito uma grande bola vermelha no topo do caderno. “safando” não saia. De modo que tive de cortar o bocado de papel com a tesoura. Ao lado do papel cortado ficou uma verde, esfarelada de água salgada.
Já quase no fim da aula, mandei arrumar o 1º ano enquanto o 3º acabava a cópia. E à espera do toque fui conversando com os pintainhos. A Márcia já ria e contava-me dos campos que tinha, das estufas de cebolas e de alfaces. Aquela gente cultivava os legumes que eu compro embalados no supermercado e que eu penso que nascem nas prateleiras.
- Professora, tenho um espantalho. Tem uns olhos assim. – fez uma argola com o indicador e o polegar e colocou nos olhos dela.
Não contive as gargalhadas de contentamento por alguém me dizer que tinha um espantalho. Não um bonequinho de pelúcia, ou um bibelot de barro, mas um espantalho “de carne e osso”.
No dia seguinte, peguei n' O Feiticeiro de Oz. Vamos lá dar vida a esse espantalho.
Não é a primeira vez que tenho vários níveis na turma. Mas é a primeira vez que tenho o 1º ano assim tão pequeno a iniciar a aventura das letras.
Entre a correria do 3º ano que me diz constantemente “já fiz” e um 1º ano que agarra a minha camisola perguntando a cada letra que desenha no caderno “é assim?”, por vezes abstraio-me só num deles, esquecendo o outro completamente.
E foi num desses esquecimentos que eu não vi a Márcia a pintar as unhas.
A Márcia é um dos cinco pintainhos que se esfarrapa a trabalhar, juntamente com o Luís. Bem juntos à minha secretária ouço-lhes as conversas em surdina. Falam do campo, da catequese, do senhor padre, da mãe, dos patinhos que nasceram. Muito conscientes do seu dever trabalham enquanto conversam.
O Luís, uma vez por outra leva uma bola vermelha no caderno. A última foi por ter andado a correr atrás da Catarina, linda de morrer, juntamente com os colegas mais velhos da turma para lhe dar beijinhos na boca, segundo as queixas das meninas. Muito honestamente, levantou o braço quando perguntei pelos nomes dos perseguidores.
- Não acha que ainda é muito pequeno para olhar para a Catarina? – perguntei com um ar muito sério, treinado para impor respeito. Ninguém desconfia que me estou a rir.
- Não volto a fazer. - disse ele, de expressão solene.
Mas a Márcia tem levado sempre bola verde. Nem uma amarela consta do seu cadastro. Alertada por um dos rapazes mais crescidos, acordei para me dividir novamente entre duas classes. Tirei das mãos da menina o frasco do verniz e guardei-o na gaveta da minha secretária. Gritei-lhe uma bola vermelha e nada de intervalo no dia a seguir.
Retornei às leituras do 3º ano. Encostada ao meio do quadro vigiava, defraudada, os mais pequenos. A Márcia parou de trabalhar. De cabeça apoiada numa mão, triste, de pensamento lá longe, quebrava uma das regras da sala de aula: riscava a mesa com o lápis.
O Luís, muito carinhoso, consolava a amiga que partilhava com ele desabafos telúricos. “Oh Márcia, eu já lebei um bermeilho, bô pedir à professora para amanhã ficar aqui no interbalo contigo”. A Márcia continuava a riscar a mesa, aumentando os riscos à medida da sua tristeza.
Dirigi-me à minha secretária e de lá chamei a Márcia para conversar sobre a bola vermelha. Ao meu apelo, escondeu os olhos nas mãos em concha, começando um choro compulsivo.
Entre lágrimas espessas, baba e ranho, contou que não podia levar bola vermelha porque senão não ia ao casamento.
- Qual casamento?
- … o casamento de uma mulher, balbuciou no meio de um milhar, duas centenas e sete soluços.
Ai a minha vida. O que é que eu faço agora? Se eu tiro a bola… mas se eu não a tiro…
- Vamos tirar a bola do caderno. Mas o castigo mantém-se. - disse eu.
Ela tinha feito uma grande bola vermelha no topo do caderno. “safando” não saia. De modo que tive de cortar o bocado de papel com a tesoura. Ao lado do papel cortado ficou uma verde, esfarelada de água salgada.
Já quase no fim da aula, mandei arrumar o 1º ano enquanto o 3º acabava a cópia. E à espera do toque fui conversando com os pintainhos. A Márcia já ria e contava-me dos campos que tinha, das estufas de cebolas e de alfaces. Aquela gente cultivava os legumes que eu compro embalados no supermercado e que eu penso que nascem nas prateleiras.
- Professora, tenho um espantalho. Tem uns olhos assim. – fez uma argola com o indicador e o polegar e colocou nos olhos dela.
Não contive as gargalhadas de contentamento por alguém me dizer que tinha um espantalho. Não um bonequinho de pelúcia, ou um bibelot de barro, mas um espantalho “de carne e osso”.
No dia seguinte, peguei n' O Feiticeiro de Oz. Vamos lá dar vida a esse espantalho.
da Leonor
31 Comments:
Olha, Leonor, o que queres que te diga? Quem, com um mínimo de sensibilidade, pode ficar indiferente ao que escreveste? Derretido, quase no sentido literal do termo, ainda me resta alguma consistência nos dedos para te dizer, teclando gelatinosamente: quem me dera ter tido uma Leonor como professora quando fui pintainho!!!!!
Beijinhos deste cada vez mais teu admirador
Zé
Leonor,
Cá continuas com o teu poder de encantamento ao desdobinar as tuas "aventuras"...
Que pena tenho de não ser um dos teus pintainhos e muito mais não ter tido uma professora como tu!
Gostei de ver que estás a ambientar-te... até já reproduzes a "fala do norte", carago!, na voz das tuas crianças...
É bom saber que também o norte deixado ao ostracismo do poder central, também tem direito a uma professora tipo "Leonor".
As nossas crianças merecem-na!
Um obrigado em nome de todas elas, quer levem bolas vermelhas, amarelas ou verdes...
Querida Leonor!
Que texto tão bonito e enternecedor.
Mas não me espanta.
Tu sabes dar ao que escreves um cunho de encantamento.
Gosto sempre muito que coloques um novo post, pois sei que vou tens uns momentos de deleite.
Obrigado pela forma como escreves e pelas coisas que nos contas.
Beijinhos
Leonor se eu tivesse filhos pequenos, era na tua escola que queria que eles andassem.
Um beijo. Augusto
Olá, Mãe Leonor! Primeiro... Não te fazia assim com uns filhotes! Mais pareces irmã!!! Segundo.. gosto do CARINHO com que falas dos teus pintainhos! Adorei a tua narrativa e, adivinho-te na empatia com todos aqueles que têm a sortre de privar contigo como Professora! :)**
Sabes o que te digo? Quem me dera ser pintaínho, ter uma professora Leonor e viver num lugar assim onde ainda há espantalhos a valer. Que saudades das conversas inocentes entre pintaínhos....
Professora, com que rima Leonor?
Com amor!
Beijinhos
Andorinha
Voltei para dizer que estava na casa da minha vizinha... Mas tu sabes quem eu sou, né, professora?...
Obrigado pela visita.
Agora vou fazer uma pausa em novelas grandes (grandes para publicar em blog).
É altura do repouso do guerreiro.
eh eh
Beijinhos
Oh minha querida Leonor... o que é que eu posso dizer - da tua imensa ternura - sensibilidade - desse coração tão grande e repleto de magia!
Terem uma professora como tu - Esses pintainhos têm muita sorte!
Beijinhos
como eu te compreendo, dividida entre uns pintainhos e outros mais pintainhos ainda. O engraçado é que eu tb chamo pintainhos aos meus!
Adorei o teu texto, já passei por essas situações tantas vezes!
Ai Leonor derreti-me imenso com este post. É que eu comecei a dar aulas ao 1º ano e ao 4º com 17 anos. Tinha bem mais pintaínhos e cheinhos de problemas porque eram , na sua maioria filhos das prostitutas do Bairro Alto, em Lisboa. Mas eram tão queridos que passados tantos anos ainda me lembro deles.
Depois, mais tarde comecei só a dar aulas de música mas como ficava anos a fio nas escolas acompanhei o crescimento de muitos meninos dos 3 anos até ao 4º ano. E, quando me vim embora de Portugal chorei baba e ranho com estes ultimos que acompanhei que se agarravam a mim a pedir para não me ir embora. E nem sonhas as saudades que eu tenho de todos eles. Aliás eu tenho muitas saudades de trabalhar com crianças.
um beijinho grande
Zica
Querida Leonor
Como sempre fico embevecido com as tuas histórias reais... mas essa do verniz das unhas numa miúda de 6 anos na sala de aula merecia mais pesquisa. A miúda ficou a saber que não pode pintar as unhas na sala de aula, mas com certeza fora dela, mas porquê? Por que pinta? Adivinhamos as razões, mas não será tóxico para uma miúda? Sei lá... Confusões de índole masculina... minhas, lol.
Um beijo
Daniel
Nesta bela história,
contada pelo carinho de mãe,
pela ternura de professora,
pela experiência da vontade,
na miscelânea dos infantes,
os cinco pintainhos amorosos,
mai'las brincadeiras do crescer...
E, neste quadro cénico,
o teatro reescreve a vida,
a vida dum povo que,
citadino nem percebe que existe!
Que consolação saber-te,
ser professora, mãe, educadora,
neste país que também é meu,
e, onde tantos pouco fazem,
pelo futuro de mais que tantos!
Que consolação é lêr-te,
apreciar estas venturas,
que aventuras não são,
porque quem ganha mesmo,
é o anonimato destas crianças,
pulmões deste povo, onde estou!
parabéns,
Ricky
Era uma vez ...
... E aqui temos mais uma história de vida do nosso
dia a dia contada de forma superior, de quem tem a
tarefa de ensinar e educar nos primeiros anos de escola,
conta-nos passagens de apenas um dia de aulas em que
tem pelo menos alunos de duas fachas etárias diferentes,
suas necessidades e seus comportamentos.
Agora a parte mais difícil, a da professora que também, tem
de ter dois modos de vivência com os alunos, o reconsiderar
após alguma decisão tomada, enfim a consciência de ser
justa e correcta, não é fácil.
há também aqui neste texto alguma transmissão por parte dos
Alunos que habitam num meio rural e nos induzem conhecimentos
com os quais não somos confrontados no dia a dia.
O bom seria que em todas as escolas do nosso País não houvesse
necessidade de ter alunos de idades e classes diferentes no mesmo espaço físico e com o mesmo professor, mas é o que temos!!
JMC
São estas "aventuras" que fazem da tua profissão uma das mais belas de todas...pena é que nem sempre seja merecidamente reconhecida
Bom fim de semana
Muitas vezes temos que ser flexiveis nas regras.Foi bom para a Márcia e de certeza que lhe serviu de emenda.Engraçada a expressão "Pintaínhos" e um ralato real de uma aula com niveis diferentes.Bom fim de semana.
para JMC
e mais uma vez que bom a sua visita e as suas palavras.
pois é!
esta é a escola que nós temos. e por mais quenos professores tentemos melhora-la nos bastidores, a lei nao nos deixa fazer melhor.
abraço da leonoreta
"os meus pintainhos"...
adorei...a expressão que usaste...
toda a ternura deste teu Post...
beijokitas amigas
Minha amiga :)
Um bom fim de semana
jinhos grandes
Desde que comecei a ler-te gostei de todos os posts, mas este... é o melhor de todos que li! Honestamente, uma emoção gostosa ia tomando conta de mim à proporção que os olhos absorviam o texto. Não, não chorei. Sorri - ao pensar nos teus pintainhos e de como interages com eles.
Um beijo, Leonor. Que Deus te conserve assim.
Uma ternura este teu texto. Senti-me menina, de tranças e soquetes, a perguntar na minha vozita, - Está bem assim, Sr. Professora?
Esta tua capacidade espantosa, que me delicia cada vez que aqui entro e leio as tuas estórias!
E, os teus pintaínhos, um dia recordarão o afecto que se sente e eles senirão em ti...
Um abraço ternurento e de olhar lacrimejante, mas risonho...
;)
Ressalvo; "sentirão"
;)
O nosso 4º leilao termina as 22h, queres ir la dar uma espreitadela? Beijinhos
Bela Leonoretta
Apeteceu-me ir para a tua capoeira! rsss. Eu tenho outra, mas constituida por galitos rsss. A maioria foram pintainhos como os teus mas....provaram da alpista errada! Agora todos os afectos que estiveram adormecidos, despertam. Sorte tenho eu que estou ali para os receber e ensinar a gerir rsss!
Beijinhos e aproveita bem a semana
Ana Joana
Tão pequena e já de verniz nas mãos ;)
A sorte da márcia é que a ti não se estalou o verniz e lá recortaste o desaverginhado vermelho!
Beijinhos
Haja mais Leonores!!! O carinho e atenção que dedicas aos teus pintainhos são de louvar.
Bj Vagabundo
para ana joana
eu sei dos teus galitos...
ainda me lembro de uma hsitoria que me contaste o ano passado ao telefone... de uns pombos...
que bom ter-te aqui a escrever.
abraço da leonoreta
Obrigado pela tua visita à minha casinha, Leonor!
Tenho lá tanta coisa importante guardada!
Sabes que este é o meu 99º post?
O próximo será o 100º (já o diria o La Palisse...eh eh)
Um beijinho para ti, minha fiel leitora
Oi Leonor...
Tudo bem?
O meu Blog está a participar dum concurso.
Vai lá, pois eu, claro que conto com o teu voto.
Beijokas.
As crianças não param de nos pasmar e encantar...... :)
beijos
Que ternura! Fiquei derretida com os teus pintainhos!
Bjs
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