Maria Rapaz
Na natural construção de uma amizade, a descoberta de um pelo outro, faz-se a princípio, de grandes conversas, depois de pequenas frases que, lentamente, vão dando lugar a sorrisos espontâneos e a silêncios subtis, cumplicidades de quem já é amigo.
Há dias, a Isabel, uma colega de trabalho, a propósito da minha maneira de ser, que ligeiramente se distancia da postura professora modelo perfeito de emoção controlada, disse-me "devias ser maria rapaz".
O dito parou o meu olhar no dela. Deixei de vê-la na minha frente. Regredi cerca de três décadas e vi uma menina franzina, quieta com um vestido de bordado inglês e cabelos castanhos caídos em saca rolhas pelos ombros.
Embora eu gostasse mais de brincar com a pista de comboios do meu primo - eu não tenho irmãos - do que com as minhas bonecas, Nancy e Cindy, isso não fazia de mim arrapazada…e embora eu tivesse substituído muito cedo os livros da Anita pelos mosquitos do Mandrake, do Fantasma e do Super Homem, isso não fazia de mim arrapazada. Para falar a verdade, nunca me identifiquei com nenhuma figura feminina das histórias infantis, nem com a fada nem com a bruxa. O meu grande modelo foi sempre o João Sem Medo, mas isso não fazia de mim arrapazada.
Cedo substituí as calças de terylene de várias cores e, algumas axadrezadas, pelos jeans Lois justos nas pernas e nos tornozelos. Atirei os meus mocassins com duas borlinhas fora e passei a andar calçada com as minhas sapatilhas adidas. Os livros ficavam mais giros naquela mala de couro tipo charuto, onde não cabia nada, mas que me dava um estilo muito contestatário.
Esticava o meu cabelo diariamente com a ajuda de um secador e de uma escova, penteando-o com risco ao meio, numa tentativa de me parecer com a Joan Baez na capa do seu álbum de vinil, Diamonds and Rusts, mas com um cabelo demasiado ondulado fiquei-me pelos meus saca rolhas, assumindo um ar de Carol King.
As vezes que eu tentei os acordes da sua canção “You have a got a friend” na viola de caixa… cantando a letra, convencida da minha voz melodiosa… não percebendo porque insistiam em que me dedicasse mais aos livros.
Ia assistir aos concertos musicais no pavilhão desportivo de Cascais oito horas antes do evento só pelo prazer do pensar que estava a viver um Woodstock. E o mesmo fiz quando passaram nos cinemas os filmes The Last Walz e Fernão Capelo Gaivota, cantado pelo Neil Diamond.
Mas isso não fazia de mim arrapazada. Pelo contrário. Os meus jeans apertados, as minhas camisas de flanela aos quadrados, os meu casaco de pele de carneiro e as minhas caneleiras com protectores nas solas davam-me um ar muito feminino.
Passaram-se alguns anos. Finalmente, consegui domar o cabelo. Uso-o mais ou menos liso consoante o que a humidade atmosférica me deixa, de risco ao lado, despenteada a maior parte do tempo, sem querer ser ninguém, a não ser eu própria.
Ainda uso jeans e sapatilhas. Mas a marca deixou de interessar. A sacola é uma pasta preta que leva o portátil e o livro do professor. Trago o telemóvel no bolso das calças. Penduro os óculos na gola da t- shirt. Bato com a mão na secretária para calar a agitação dos miudos, estrangulando o dedo anelar com o anel que se entorta. Levo um apito para as visitas de estudo para todos me ouvirem porque não sei assobiar com os dedos na boca… (porque se eu soubeeeeesse…).
Mas isso não faz de mim Maria Rapaz.
Da Leonor
Passaram-se alguns anos. Finalmente, consegui domar o cabelo. Uso-o mais ou menos liso consoante o que a humidade atmosférica me deixa, de risco ao lado, despenteada a maior parte do tempo, sem querer ser ninguém, a não ser eu própria.
Ainda uso jeans e sapatilhas. Mas a marca deixou de interessar. A sacola é uma pasta preta que leva o portátil e o livro do professor. Trago o telemóvel no bolso das calças. Penduro os óculos na gola da t- shirt. Bato com a mão na secretária para calar a agitação dos miudos, estrangulando o dedo anelar com o anel que se entorta. Levo um apito para as visitas de estudo para todos me ouvirem porque não sei assobiar com os dedos na boca… (porque se eu soubeeeeesse…).
Mas isso não faz de mim Maria Rapaz.
Da Leonor
32 Comments:
Simplesmente adorável o que li e ficas a saber com ou sem fotografia amarelada, não fará de ti uma Maria Rapaz, mas sim uma Maria de Coração grande
Mas que belo autoretrato evolutivo.
Como dás uma imagem tão viva e tão sincera de ti mesma.
Deliciei-me com esta leitura!
E, deixa-me que te diga, não és nada uma Maria Rapaz.
És uma mulher fantástica!
Jinhos
Leonor,
A mais bela fotografia feita de palavras.
Pelo pouco que te conheci lá no Fraternidade (no jantar) e com esta tua descrição, não faz de ti uma maria rapaz, mas sim uma Mulher e pelo que tenho lido ao longo destas crónicas todas, com um GRANDE, mas ENORME Coração.
Sabes, neste mundo onde estamos, esse produto penso que não se fabrica mais... Maria Rapaz, Mulher Enorme... que importa?
És uma mulher fora de série!
Um abraço.
Eu era maria rapaz...em minha casa não havia bonecas.Os brinquedos mais ou menos feitos por mim eram mais parecidos com carrinhos. Trepava às árvores, caçava grilos e gafanhotos. quanto ao cabelo, sempre cortado pequenino (ia ao barbeiro com o meui pai, não tinha pachorra para a cabeleireira). achei piada ao pormenor do anel: o meu também anda sempre torto!
Rais´parta os garotos...
Sonhei com duas bonecas lindas,
a Cindy e a Nancy, tristonhas,
de lagrimita no olhinho,
ali despojadas no toucador,
uma sentada a cada canto,
como um mero ornamento!
Viam o Mandrake fazer magia,
o Super Homem voava de cá para lá,
e o Fantasma desbravava a floresta,
e elas ali como peças inertes...
Os tempos voaram, a mãe adoptiva,
se tornou mulher e mãe de verdade,
professora de uns felizardos!
E, voltaram a sorrir de verdade:
Isso não fez dela Maria Rapaz!
Acordei.
Tenho de responder no blog,
mas não sei o que dizer!?
Maria Rapaz?!?
Não me parece...
Só mesmo em sonhos...
Bjinhos Ricky
Oi...
Bom dia...
Tu Maria Rapaz???
Claro que não...
Adorei o teu texto...5 estrelas... com humor q.b.
Beijokitas.
Leonor,
O erro devia ser meu.
A partir deste momento vejo o teu blog como deve ser.
Tem uma boa semana.
Um abraço.
Querida Leonor
Deixando os estereotipos... não é ser rapaz sonhar com comboios (sonho de aventura, de novidade após cada curva,mesmo a brincar), ler banda desenhada desse tipo, que aliás não foi feita só para o sexo masculino (mais uma vez o sonho e a aventura, ao contrário das histórias certas e previsíveis da Anita, ou das brincadeiras com bonecas); também não é ser rapaz andar vestida e ter a postura que descreves, pois era típico da época, em que havia a magia no ar e as ideologias de transformação social, que muitos comungavam; cantar mal querendo fazer música, aconteceu a muitos (eu incluído) homens e mulheres, pois a música era intervenção; e não é ser masculina gostar que haja disciplina flexível para que as actividades de grupo possam ter resultados interessantes.
Assim, diria que não te preocupasses com o cabelo frisado, pois deve ser mais bonito que tê-lo liso (opiniões, ehehe), quanto ao resto, até agora só vi uma mulher de corpo inteiro, que gosta de saber, que para isso tem de ser curiosa e que em tudo não deixa de ser muito feminina.
Um beijo
Daniel
Leonor, cê é um doce, sabe? Rejane disse a mesma coisa, quando te viu (leu) falar sobre as crianças (Rejane também é professora).
Leonor, cê é um doce, sabe? lembra algumas das minhas primas, quando éramos crianças, e líamos gibis, como os que você lia, e brincávamos até a noite engulir o dia numa dentada só!... porque o dia é tão miudinho, quando estamos a brincar?! e as meninas jogavam bola conosco, os meninos; e não faltávamos às festas que elas fazim para as bonecas - de jeito nenhum!
Leonor: cê é um doce, sabe?... eu sei, e todos que aqui te lêem.
Um abraço fraterno e um beijinho no seu coração generoso.
Belíssimo texto. Um grande aplauso. ;)
Uma maneira de retroceder no tempo, parece que paira no ar uma nostalgia... são muitos os blogs que visito e em que se recordam tempos passados, maria rapz ou não somente vejo que és uma mulher fantástica que eu não me importava de ter tido como professora.
Beijocas*
Achas os meus comentários bonitos?
Talvez porque são iluminados pelas luzes que tu irradias!
Jokas
gostei tanto deste teu auto-retrato:)
ri no final com «se eu soubesse»:)
**
para o ricky que nunca mais inicia as suas escritas no "de costas para o rio"...
que bonito ricky. que bonito....
abraço da leonor
Fizeste-me rir! Recordei tantas coisas da minha adolescência... Um dia vou contar pois são coisas engraçadas que é bom recordar. Mas ocorreu-me agora esta mais recente, embora já tenha uns anitos: uma colega de emprego ficou muito admirada quando viu umas rendas feitas por mim pois achava-me pouco feminina...
E que bom é regredir ... fechar os olhos e relembrar tudo aquilo que faz de nós as pessoas que somos hoje ... um beijiho GRANDE minha linda ~:o)
não faz de si uma escritora de bonita escrita.desculpe passei por aqui e gostei do seu texto.ana costa
para a Ana
nao tens que pedir desculpa por teres passado por aqui... as ruas da internet sao livres.
gostei muito da tua visita como aprecio todas as visitas que me fazem. sao sempre "bem vindos quem vier por bem" e já agora "traz mais cinco amigos também".
ainda bem que gostaste do meu texto.
beijinho da leonor
Por aquilo que me apercebi de ti e, por aquilo que também tenho lido, acho-te bem feminina.
Não te vejo nada como Maria Rapaz… também adorava ler o Mandrake, o Fantasma e o Super-homem, acreditas que ainda guardo alguns livros antigos do fantasma (alguns os meus filhotes, extraviaram e fiquei furiosa…) apesar de ter sido uma menina que gostava (e ainda gosto) muito de bonecas…
Adorei ler a versão que fazes sobre ti, é quase mágica… porque consigo “ver-te”, através das tuas palavras…
Recebe um abraço carinhoso e um sorriso bem alegre ;)
Leonoretta
Adorei este texto, cheio de sensibilidade e de saberes e lembrei a imagem que tive com prazer á minha frente num jantar e de repente sorri e pensei, MAria Rapaz? Nunca!
Beijinhos
E que seja. Ora, a sensibilidade não tem sexo. Ou terá? Não, acho que não. Lindo e forte o teu texto.
Ai como eu te entendo, Leonoretta, como eu te entendo.
Sabes, carrego nas costas o estigma de q as professoras de Português são, quase sem excepção, velhas chatas, rabugentas e de óculos a penderem da ponta do nariz. Reza a história q são modelos exemplares de correcta postura linguagem formal.
Pois tu estás a ver-me bem? Das lunetas livrei-me há dois dias, mas nem por isso andavam na ponta do nariz pois q se assim andassem eu n veria um palmo à frente do dito. Qt à postura, só mesmo as costas é q tento colocar direitas a bem da minha rica saúdinha que, de resto, adoro uma boa gargalhada, bem sonora e estridente! Até lava a alma!
E n prescindo das minhas jeans, se possível modelo pirata que me fazem menos calor! Sapatos altos nem vê-los q sou alérgica a calos e trambolhões já eu dou, mesmo de solas rasas... Enfim, sou uma professora tresmalhada, mas dou-me mt bem assim e acho q este é um dos caminhos de acesso fácil para levar a poesia e as literaturas ao coração das minhas crianças e adolescentes.
Tens pois aqui uma aliada incondicional!
beijinho grande
Bonito texto...
Bonitas recordações...
Tudo muito bem explicado, desde a infância, que não convém esquecer.
Por que não um Livro de Memórias ?
Um Abraço
Nos teus links de blogs , o T ( entre outros ) não está preenchido. Que tal meteres lá o Travessa Larga ?
Olá Leonor
Engraçado... até determinada idade eu fui maria rapaz, gostava de jogar à bola, andava sempre com os joelhos esfolados, usava roupas largas... mas isso agora não interessa nada.
Já há algum tempo que te venho ler.. e quando me vou embora sinto sempre que saio mais "rica".
Um beijinho pra ti e obrigada por partilhares os teus bonitos textos,
Van
Para a Vanessa, que nao tem blog para eu responder...
sabes vanessa, conheço uma vanessa que também assina van...
gostei de saber que ja les estes textos ha ja algum tempo e que de algum modo a sua leitura te deixa feliz.
assim me deixou o teu comentario.
beijinho da leonor
Que bem que escreves, Leonor. A evolução do teu auto-retrato é maravilhosa. Já te tinha dito que adorei conhecer-te no jantar do Fraternidade? És uma mulher linda, amiga dos seus amigos. Virei mais vezes ler os teus belos artigos, apesar da minha ausência forçada pelo trabalho. Bjoka grande, amiga
Ola Leonor
Pensei que nao precisava de dizer... mas sou essa Vanessa que conheces rs...por isso te deixei esse post, de vez em quando venho cá "cuscar", o astral é óptimo e como disse antes gosto muito de ler o que escreves.
Outro beijinho
Van
ola Leonor eu trago cinco amigos e tu levas dez ao meu covil, está bem assim?hihihi
claro que estou aqui em publico a convidar-te a visitares o meu recem nascido blog, nada de especial, mas....
www.amcosta.blogs.sapo.pt
estou à tua espera com os dez amigos-hihihi
Olá Leonor,
sem saber como vim aqui parar e simplesmente fiquei deliciada com este teu (acho que te posso chamar assim) post... não sei se é por ser da mesma geração, se é porque eu também não tenho irmãos, se é porque eu também ia ser prof (desisti à última hora).. eu também não me acho Maria Rapaz... revi-me por trás de cada uma das tuas palavras, até das calças Lois, as minhas 1ªs de marca e dos meus ténis.. só sei que me puseste a sorrir. Bjhs
=)
Boa tarde Leonor! Obrigada pela visita!
Bem...passeei por aqui um pouco. Adorável este texto, esta volta ao passado, esta lembrança profunda daquilo que fomos e que somos agora.
E eu...era Maria-Rapaz, mas demasiado convicta que era menina!
Passa lá mais vezes...é bom ter visitas.
até breve, cá é lá!
;)
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