Estigma
Foto de Luc Selen
Nos momentos de expressão plástica, a sala de aula transforma-se na Feira da Ladra. Incapazes de ficarem sentados nos seus lugares a pintarem os seus desenhos, os miudos levantam-se amiúde, trocando lápis de cor e perseguindo ferozmente o célebre lápis cor de pele, um rosa creme muito claro, para colorir as suas representações humanas, que independentemente da etnia do autor, são sempre caucasianas.
A hora é livre, o desenho é livre e eu abandono-os à sua criatividade enquanto me abstenho da minha, apontando numa folha os pacotes de leite consumidos pelos alunos durante o dia, assim como as faltas que deram no livro de frequências.
Neste ambiente de troca de objectos cilíndricos cromáticos e partilha de ideias feitas linhas e manchas no papel fala-se alto, como aliás se fala em qualquer feira. A Rita, miúda negra de doze anos, pergunta-me: a professora gostava de ser negra?
A pergunta abana-me.
Fosse qual fosse a resposta, ela iria ter sempre um peso decisivo na afirmação da identidade da Rita.
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Identidade é a consciencia que o individuo tem de si próprio, do lugar que ocupa no mundo. A identidade constrói-se nas experiências vividas através de um jogo de identificação no qual uma pessoa assume características do seu grupo, ou seja, cada um constrói o seu eu através das relações que estabelece com os outros.
Identidade é a consciencia que o individuo tem de si próprio, do lugar que ocupa no mundo. A identidade constrói-se nas experiências vividas através de um jogo de identificação no qual uma pessoa assume características do seu grupo, ou seja, cada um constrói o seu eu através das relações que estabelece com os outros.
O desejo mais primário do homem é o de ser amado e este ideal de ser aceite leva-o a corresponder a uma série de expectativas do outro, tornando-o obediente, fazendo com que a sua identidade seja moldada em troca de estima condicionada.
Na infância, o pincel que desde o inicio dá cores ao nosso retrato está nas mãos da família que nos pede que sejamos aquilo que ela deseja e não aquilo que somos. Mais tarde na adolescência passamos a identificar-nos com o nosso grupo de pares e a olhar-nos com os olhos dos outros.
Esta identidade pessoal e social são dois lados juntos, o de dentro e o de fora. O individuo possui uma identidade real, a dele, aquela que é a sua na realidade, e uma identidade virtual que lhe é atribuida pelos outros e que não lhe pertence, que ele vai construindo conforme as situações, com a finalidade de agradar.
O problema da identificação é que torna o individuo como alguém moldado pela ideologia dominante, interiorizando imagens consideradas perfeitas pela sociedade. Daí, que ele tenha dificuldade em aceitar quem não corresponda moral ou fisicamente a estes modelos sociais, impondo-lhe um estigma.
O sujeito que possui uma marca física que o torna diferente dos outros sente-se como alguém normal, igual aos outros, como se não a tivesse porque essa marca não o diminui. No entanto, o resto da comunidade, exclui-o fazendo-o sentir a toda a hora a incapacidade que essa marca lhe confere, fazendo com que ele se sinta marginalizado e desprezado.
Penso que o único modo de tentarmos resolver o problema de afastamento do outro que não se identifica connosco, seja porque motivos for, é libertar-nos das teias de aranha que prendem os nossos sentimentos e pensamentos em relação ao modo como encaramos o corpo do outro, tornando-nos aberto e livres do paradigma ditado pela sociedade.
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Respondi à Rita, explicando o meu ponto de vista sobre a cor da pele tantas vezes questionado por mim ao longo do processo da construção da minha identidade.
"A cor da nossa pele é um acidente. Não pode ser mudado. Mas o nosso carácter não é um acidente. Depende de nós. Se fores boa pessoa os outros gostarão de ti por fora e por dentro e tu gostarás de ser negra."
Fosse qual fosse a resposta, ela iria ter uma peso decisivo na afirmação da identidade da Rita.
Respondi à Rita, explicando o meu ponto de vista sobre a cor da pele tantas vezes questionado por mim ao longo do processo da construção da minha identidade.
"A cor da nossa pele é um acidente. Não pode ser mudado. Mas o nosso carácter não é um acidente. Depende de nós. Se fores boa pessoa os outros gostarão de ti por fora e por dentro e tu gostarás de ser negra."
Fosse qual fosse a resposta, ela iria ter uma peso decisivo na afirmação da identidade da Rita.
da Leonor
34 Comments:
Querida Leonor
Nas verdades insofismáveis de querer agradar, caso haja vontade de pertencer ao grupo, e de mudança comportamental para identificação com o grupo, surge a necessidade da autonomia individual, que nos permite ter a consciência da importância do eu, o que só se adquire com uma boa auto-estima e a sensação de ser capaz, para além dos outros. A responsabilidade de formar carácteres de pessoas muito jovens é enorme. Felizes os que têm alguém que os consiga ajudar nesse caminho de afirmação do eu. Em resumo, felizes são os teus alunos, apesar das carências...
Um beijo
Daniel
daniel
obrigado por achares que os meus alunos são felizes por me terem como professora. Porém, quantas vezes fico a pensar se o meu agir teve um reflexo para o bem ou, se pelo contrário...
abraço da leonor
Gostei muito do texto e vim também ouvir a música :) Parabéns pelas duas coisas e muitos beijinhos!
Infelizmente neste mundo muita gente ainda pensa que a unica cor da pele é "branca"...ingnoram as outras cores!!! Admiro os Professores que tentam mudar isso...
Com que então melhoramentos na casinha, hemm?
Desta vez apresentas-nos uma versão audio do blog.
Muito bem, sim senhora!
Achei este post muito bom.
Analisas de forma muito inteligente aspectos relativos à identidade pessoal.
Jinhos
mitsou
gostaste da música?
jota
ora agora é que disseste uma grande verdade
antonio
pois, de vez em quando temos de pintar as paredes, rs
obrigado pelo elogio ao texto.
abraço da leonor
Um post excelente Leonor, de que retenho e gravo na memória o penúltimo parágrafo. Escolheste uma profissão difícil, cada vez mais os professores têm uma grande responsabilidade na formação das novas gerações, uma responsabilidade que aumenta na proporção inversa da (cada vez maior) falta de tempo dos pais
Mas enquanto houver professores como tú, fico tranquilo.
Beijinho,
José Carlos.
Leonor, cá está o chato!
Entrei nesta tua casinha e pensei que me enganara...
Então conseguiste a música... como é que se faz, como é que se faz... já pareço os teus miúdos.
Que pena não te ter como professora.
Continuas a deleitar-me com o teu poder de escrita...
Para quando os novos livros?
Um abraço, amiga (gosto de te ver a sorrir e ver os teus olhos).
magude
grandes palavras as tuas que me enriquem o meu post. muito obrigada.
zé
tens de saber onde está o código das músicas no template. procura qualquer coisa que tenha sound, depois é só trocar uma pela outra.
olha que eu nao sou pera doce como professora, de vez em quando dou cada grito...rsssss, tem que ser.
abraço da leonor
De facto ler um excelente texto ao som duma excelente música... é excelente.
uau temo música e da boa, sabe sempre bem um som a acampanhar um bom texto
Uauuuuuuuuuuuu e temos música e da boa!
Adorei este texto e fiquei a pensar nele, sabes?
Beijo gordo
Leonor, minha esposa, Rejane, é professora de Artes Plásticas, lecionando em Brasília, Brasil, que é onde residimos. Após ler "Estigma", mostrei-o a ela. Simplesmente adorou a forma objetiva e profundamente humana com que desenvolveste o tema! Sendo assim, dessa vez os Parabéns são duplos - meu e dela -, para ti!
Esta "coisa" dos horários faz-me sempre entrar atrazado. Atrazado em dois sentidos, primeiro porque já perdi no tempo de espera, para matar a expectativa de ir ao blog, ver o que lá vem agora... depois, porque corro sempre o risco de me repetir... mas eu vou tentando fazer umas "puzias" que se encaixem, no que me vai na alma, na reacção imediata à leitura do prémio do dia... claro, prémio!
Assim, diria:
De nascimento africano,
de pele tingida à europeu,
mas afinal quem sou eu?
Um tipo muito bacano...
Pois, o feitio do feitio,
na identidade é exposto,
e, como dizia o meu tio,
anda sempre bem disposto!
Caminha amigo, pelo bem,
deixa lá a pigmentação,
o que mais conta ouve bem,
é a bondade do teu coração!
Por aqui me fico, hoje, depois deste lauto banquete para o meu espírito.
Bjinhos, Ricky
cp e mocho
obrigado por terem gostado da música. irei mudando.
frog
assuntos dificeis de serem contornados que me deixam sempre angustiada.
budha
que bom teres vindo novamente
lina
estás muito gira
batista e rejane
que maravilha. adoro saber que o meu texto atravessa o atlantico e é apreciado.
ricky
tu dizes que não te queres repetir. então e eu? que dizer da tua dedicação?... repito-me. adorei.
abraço da leonor
Adorei o post ... e música ... que bom, a música dá sempre outra "força" às palavras !!!!
Não consigo aceder ao meu blog através do teu link ... ~:o(
Só mais uma coisinha ... muito obrigada pelo carinho e pelo comentário que deixaste no meu blog a propósito do meu link !!!!
Foi amoroso !!!!
Beijinho linda !!!! ~:o)
Excelente senhora professora!A forma como deixa que o eu da criança se costroi é de registar nese penultimo parágrafo que registo "A cor da nossa pele é um acidente. Não pode ser mudado. Mas o nosso carácter não é um acidente. Depende de nós. Se fores boa pessoa os outros gostarão de ti por fora e por dentro e tu gostarás de ser negra." Que melhor resposta poderia ter a Rita na afimação da sua idntidade.Beijinhos. Arte por um canudo 2
Vim aqui, muito formalmente de fato e gravata, agradecer a tua visita ao meu manicómio e também as amáveis palavras com que mais uma vez me brindas.
E viva a chuvinha que está a cair limpando a atmosfera. Até se respira melhor!
Jinhos
caracolinha
obrigado. irei colocar mais músicas, para nã ser sempre a mesma, rss
agostinho
sabes quantas vezes me perguntei se foi a melhor resposta? ai, às vezes...
antonio
por aqui também já chove e faz vento. graças a deus.
abraço da leonor
A questão da cor da pele sempre me fez muita confusão.
É só um pigmento. Até que meio mundo não se convença que somos todos diferentes, e que entre essas diferenças está a quantidade de melanina produzida pelo nosso organismo não será possível acabar com este estigma que levou a tua aluna a fazer essa pergunta.
Gostei da tua resposta, mas acho que sabes que isso não será muito bem assim. Porque antes de ela se poder afirmar irá ser olhada de lado pela nossa sociedade.
Na minha modesta opinião, acho q n poderias ter dado melhor resposta... Em tudo na vida a verdade é sempre a melhor resposta e tu foste autêntica! :)
beijinho grande
Parabens pelo Blog, tem um nivel intelectual muito acima da média, permita-me que lhe deixe uma frase que me diz muito:
" deves ser a mudança que desejas ver no mundo" Ghandi
dumb
sim, sim, sei que não vai ser assim, muito terá ela de percorrer…
zezinho
andaste desaparecido, rs
cris
obrigada pelo comentário e pela visita.
João
O teu comentário é um grande incentivo para continuar a escrever.
Abraço da leonor
leonor, sorri ao ler este post porque recordei a minha disciplina favorita: psicologia. eu bebia aquelas aulas e lembro-me perfeitamente de falarmos sobre identidade da mesma forma que falaste.. como somos moldados pelo meio social... como a nossa personalidade, a nossa identidade é condicionada primeiramente pela familia e depois, mais tarde, pelo grupo de pares...como a infancia e adolescencia são importantes na construçao do individuo... aquelas aulas eram maravilhosas!
**
Leonor, gostei muito do texto, da forma como foi abordada a identidade, com a qual concordo plenamente. Gostava de continuar a ler mais textos como este.OK?
Quanto ao desejo mais primário, não sei se será o de ser amado ou o de não ser rejeitado.
A não rejeição abre as portas ao amor, mas a rejeição pode pôr a nossa identidade em causa, aquilo que menos queremos, duvidar da nossa verdade. A resposta à Rita não é fácil, pois é demasiado jovem para ter orgulho da cor que tem. A sua identidade está em dúvida devido ao medo da rejeição, implícito na pergunta.
Um beijo. Augusto
Passei para te deixar um beijinho, que apesar de inho é grande :)
isa
gosto muito de ter ver por aqui. psicologia, muito giro. filosofia também. literatura então....
augusto
vou tentar, vou tentar, mas saber que tenho quem aprecie o meu esforço já me anima muito.
lina
outro beijinho para ti
abraço da leonor
Algures na África profunda começou a caminhada. Lá de longe até cá, estejamos de que cor estivermos, temos sido sempre a mesma família. Amazing Grace.
VP
vitor
grande, enore, e imensa verdade.
amazing grace sempre.
abraço da leonor
Lianorme...enooooooooooore...
VP
querida amiga, hoje em vez de comentar o texto em si, gostava de te deixar uma sugestão. quando num post vemos associada uma imagem ao texto, por vezes ficamos curiosos sobre a autoria da imagem, nomeadamente se for uma pintura ou uma fotografia. É agradável poder conhecer mais coisas do mesmo artista caso nos tenha despertado a atenção. Neste caso, por acaso sei que o fotógrafo é Luc Selen, e conheço o site dele. Mas caso não conhecesse ficava desapontado por não dares nenhuma referência do autor. Não me leves a mal o reparo, mas penso é construtivamente que deixo a sugestão. Beijinho grande. J.
Adorei este post!Vou guardá-lo para reler tantas vezes. Fez-me sorrir e tenho cada vez mais consideração por ti!
"A cor da nossa pele é um acidente. Não pode ser mudado. Mas o nosso carácter não é um acidente. Depende de nós. Se fores boa pessoa os outros gostarão de ti por fora e por dentro e tu gostarás de ser negra."
Tens toda a razão! És de facto uma excelente professora!
Um beijinho carinhoso =)* Boas férias!
Best regards from NY! » »
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