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Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Friday, November 23, 2007

O mar agitado

Atravessar o Tejo no cacilheiro é uma aventura, principalmente quando o rio está levantado. O barco oscila, de tal modo, que me agarro a tudo para não cair. Ainda assim, subo para o primeiro andar. Se houver naufrágio sou das últimas pessoas a morrer afogada. Procuro um banco que tenha salva vidas e sento-me numa ponta para não ter de pedir licença para sair se a hora for de aflitos.

O barco oscila. Leio para me abstrair de sentimentos obscuros mas só penso na água gelada porque nadar eu sei. Nadar é como andar de bicicleta. Depois dos primeiros pirolitos ou das primeiras quedas já não nos afogamos nem caímos mais, supostamente. Vou ficar sem a minha mochila e sem o meu portátil. Claro que o seguro não paga se eu os perder. Aliás, nem tenho seguro dessas coisas. Nem dessas, e muito menos de mim própria.

Passo a folha do livro sem a ter percebido. Na dificuldade em pensar na segurança do meu corpo a minha alma dispersa-se. O barco oscila. Leio. Ou faço que leio. Passo as folhas. De frente para trás. De trás para a frente.

Duas vozes atrás de mim afastam-me do nervoso miudinho de pensar que vou ficar sem os meus haveres e estragar a minha roupa nas águas lamacentas de espuma oleosa.
São duas mulheres. Falam da nota vinte que os filhos tiveram a matemática
– Ele foi sempre assim desde pequeno, com dois anos já sabia ler.
- O meu só teve dezoito. Nisso sai ao pai. Mas teve um vinte a português. Nisso sai a mim.

Fico com inveja de não ser tão inteligente.

Quando uma fala a outra cala-se. Não para ouvir a sua interlocutora mas para pensar no que vai dizer de si quando a outra se calar. É um monólogo fechado em ruídos no qual ninguém ouve e ninguém diz nada.

O barco bate furiosamente contra o batelão e eu levanto-me de repente, agarrando a minha mochila, pensando que o momento do afogamento tinha chegado. O meu pânico é imediatamente repreendido por olhares inquisidores. Afinal já tínhamos chegado.

Leonoreta

14 Comments:

Blogger Zé-Viajante said...

Que susto, hem ?
Em tantos anos de cacilheiro ainda não te habituaste à tempestade ?
Sorte não navegares no Titanic...

Abraço

9:40 PM  
Blogger Daniel Aladiah said...

Querida Leonor
É típico esse diálogo de surdos em que cada um só quer suplantar o outro.
Um beijo
Daniel

12:39 PM  
Blogger lena said...

querida Leonor

o titulo dá-me asas à imaginação, mas nunca me passaria pela cabeça lembrar-me de um afogamento.

não consigo olhar o mar com dor pelos que ele levou, mesmo já tendo levado familiares meus e próximos

mas este é o meu olhar o mar que adoro

a tua narrativa está escrita com um sentimento que agarra quem a lê

conversas banais que se têm em transportes desse género, conversa de surdos, num tu cá tu lá, como se tratasse de um jogo de ping pong

não oscilei um segundo enquanto te lia, tens o poder misterioso de me saber prender e neste teu mar de palavras não seria vítima de naufrágio.

passar por aqui é reconfortante, é belo apreciar o que partilhas

o meu abraço amigo e terno, a minha mão segura e beijinhos muitos

o susto já passou doce amiguinha


lena

3:14 PM  
Anonymous Anonymous said...

Saudades de ler-te!
Já lá vão uns anitos e aqui a tua amiga estava a passar uns dias (óptimos!) no Algarve.
Decidiu-se um passar de um dia numa praia belíssima.
Perdoem-me, que agora, de repente, tive uma "branca" e não me recordo do nome daquela praia deliciosa.
Por certo que vão saber qual será.
Bom, isto, para te dizer que para se ir para lá tinha que se fazer o percurso de barco.
Estás a imaginar, pleno Agosto, um mar de gente, o barco a encher, a encher e aqui a tua amiga a querer esconder uma ansiedade que crescia a uma velocidade estonteante! Tanto que deu para que todos notassem.
Eu devia estar com um ar assustador e aqueles palermas (a minha irmã, os filhotes, as primas) tudo me gozava. Mas eu? Não queria saber. Até fechei os olhos, juro!
Agora vem a parte da minha maior vergonha...
- Vasco, tu não vês que isto pode ser uma tragédia?
Metem a Sé na Misericórdia. Esta casquinha não aguenta!
E eles riam-se, aqueles estúpidos!...
E eu agarrada à João (só tinha ainda uma filhota, muito aflita!)
E não é que eles começaram a baloiçar o barco?
Eu quase a entrar em panico (às vezes fazem-se umas figurinhas, Linda!...rsss) e eis que o Vasco, a rir, sai do barco.
Por onde dava a água?
Pouco abaixo dos joelhos...
É preciso eu ser muita lorpa, diz-me lá?
Agora imagina se tivesse sido numa viagem dessas!
É que nem conseguiria ouvir esssas duas galinholas a falar das notas das criaturinhas, dos géniozinhos!
Tinha uma síncope!

Já não passava por aqui há uns tempinhos.
Adorei ler-te, como sempre!
Vou redimir-me e voltar mais vezes!
Soube-me tão bem!
Bom resto de domingo.
Beijo doce, desta medricas assumida,
Cris

8:31 PM  
Blogger augustoM said...

O meu medo não é de morrer afogado, é de enjoar, é cá uma fita que só visto. Por vezes até penso que enjoo de mais, será das ondas ou das pessoas?
Um beijo. Augusto

1:36 PM  
Blogger Pepe Luigi said...

Magnífico este teu trecho que me levou três ou quatro minutos a ler, mas o suficientemente longo para interiorizarmos uma espantosa cena do quotidiano.

Pepe

2:13 PM  
Anonymous Anonymous said...

Sabes, Leonor, sempre me deliciei ao ler os teus postes.
Através de situações simples diárias, consegues dar uma envolvência ao texto que acho cativante!
É sempre um gosto ler-te!

Bj

1:59 PM  
Blogger mixtu said...

yayaya, que susto...
nunca andei ...
e ouvir diálogos, antes no comboio, apontava-os, tenho de andar ed comboio...

abrazo europeo

6:50 PM  
Anonymous Anonymous said...

É sempre um prazer ler os teus textos.Um abraço de solidariedade para que o susto passe.Bjs

4:03 PM  
Anonymous Anonymous said...

O anónimo atrás é o Agostinho

4:13 PM  
Blogger Lc said...

Um olá, da Ilha do Faial - Açores.

http://rotadashortencias.blogspot.com/

10:09 PM  
Blogger Paula Raposo said...

No outro dia entrei num veleiro atracado. A cena para descer a escada foi grande e depois de lá conseguir, só eu é que sentia que ele se mexia! Pelos vistos não mexia...beijos.

3:03 PM  
Blogger mixtu said...

hoje o mar está calmo, podes viajar :)

abrazo europeo

10:17 AM  
Blogger luis manuel said...

Bom ...essa ideia que o naufrágio arrasta apenas no fim quem está no primeiro andar, pode ser arriscada. Se a "coisa" leva uma volta completa, ainda se pode esperar pela conhecida bolsa de ar... que beneficia aqueles que estão no "rés do chão".
É mais ou menos como aqueles que têm vinte e que não se salvam em muitos naufrágios da vida. Não é garantido, não é seguro que assim seja. Do mesmo modo, resulta para todos os outros valores da escala.
Bom mesmo, talvez seja ter confiança, saber encontrar o equilíbrio certo.
São tantas as oscilações que vamos encontrando, tantas "tremideiras", que até algumas folhas do livro da nossa vida, passam sem darmos conta.
É uma aventura à qual não importam os haveres ou as roupas, onde será importante construir um banco, ter um apoio onde segurar a mão, e ter uma força interior muito grande.
Ao jeito de um dos "efes" - Fight !

Um abraço

6:35 PM  

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