Ex Improviso

Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Friday, May 23, 2008

O Estrangeiro

Nichita ingressou na turma há um mês.
Três dias antes chegou um fax à escola a informar que eu iria receber um menino moldavo.
Estamos no 3º período mas isso não interessa. Escola começa em qualquer dia.. Stephany é brasileira. Chegou no meio do 2º período e ela lá vai contente, apanhando os outros.

Falei com a turma. Vinha aí um colega novo. Estrangeiro. Tínhamos de ter todos muita amizade para dar e muitas palavras para ensinar.

De repente percebi que eu não sabia onde ficava a Moldávia. O Google mostrou-me onde era. A língua é o Romeno, uma das línguas latinas.
Como ensinar-lhe português? Como ensino inglês a um português. Mas quando o português não entende a língua estrangeira recorro à língua materna.
Quis um dicionário de romeno. Mais uma vez descobri-o na Internet. Com som e tudo.

Três dias depois o Nichita entra na sala acompanhado dos pais. O pai arranha português. A mãe fala comigo em francês, inglês e italiano. A minha veia portuguesa permite entender qualquer cidadão do mundo.

Começamos pelo i. Rapidamente avanço para o u. Descubro que ele percebe o ditongo: iu. Junto o p e ele lê piu.
Paro.
Escrevo pa, pe, pi, po, pu. Ele lê.
Junto pa com to. Ele lê.
Ai que maravilha! Ele sabe ler. Mas… não atribui significados ao que lê.
Nunca desenhei tanto na minha vida para ensinar conceitos como dentro, fora, sobe, desce…Por vezes ele encolhe os ombros. Não percebe. Contudo, nunca desistimos.

Sentei-o na carteira da frente perto de mim, ao lado da Stephany. Ela, nas suas dificuldades, ajuda-o.
Desenhei-lhe um rectângulo no caderno. Escrevi por baixo o nome dele e disse: desenha o Nichita. Ele hesita. Stephany diz-lhe, carinhosamente o seu indicador no peito do colega: É você. Desenha você.

Um dia, num dos meus intervalos passados na sala chego-me à janela para observar os miúdos que jogavam à bola. Alguns vêem-me e saúdam-me.
Nichita que brinca com eles diz-me adeus e ri-se. Está contente na escola.


Leonoreta

13 Comments:

Blogger Manuel Veiga said...

parabéns. pelo texto.

e, sobretudo, pela missão é a tua. ensinar a ler...

gostei muito.

11:17 PM  
Blogger Jorge P. Guedes said...

Bom dia.

Venho aqui porqe me foi recomendada por uma colega e amiga da Blogosfera, a Isabel, do
"A ver o mar".

É curioso como fala do Nichita. e da menina brasileira.
Tenho comigo desde o ano passado a Daniela, moldava, também.
É uma menina alta, branquinha de pele eolhos azuis, de irreprensível porte, comportamental e físico. parece uma daquelas meninas que fazem ballet, de costas muito direitas e cabelo apanhado com uma trança ao meio.
No ano passado, pouco percebia do que se falava nas aulas. Ela própria, quando por mim instada a repetir agumas palavras, mal se ouviaa resposta. Envergonhada, tímida, educadíssima.
Um dia sugeri-lhe que meensinasse uma outra frase da sua língua, ao que me respondeu: Não gosto!Parecia-me, e ainda me parece, que a Daniela quer esquecer o seu país, não pretende pelo menos recordar os tempos que lá passou.
hoje, fala já muito bem português e é a melhor aluna da turma em quase todas as disciplinas.
Vai ler, na próxima 5ª feira, um poema em Inglês, na semana da leitura das línguas. Chama-se "The clones".
Às vezes, gostava de a poder clonar quando vejo tantos outros miúdos do meu país, sem as dificuldades e as traumatizantes mudanças a que a Daniela se viu sujeita, andarem na Escola sem a mínima noção de responsabilidade e sem a mínima educação trazida de casa.
Que Educação é esta que se cultiva em Portugal?

Os meus melhores cumprimentos.
Jorge P.G.

5:58 AM  
Blogger Isamar said...

Leonor, Amiga!

Também tenho alguns alunos estrangeiros. Já os tive de quase todos os países do Leste europeu: romenos, moldavos, ucranianos, russos e búlgaros. Em todos encontrei o mesmo gosto pelo saber, a mesma postura na aula e no recreio. Não me surpreenderam porque já tinha conhecimento de quanta importância tinha um professor nos seus países e de quão importante para a vida é o conhecimento.
Sei que em breve o Nichita saberá ler e significado e signifante do signo serão para ele aquilo que tu pretendes.

Deixa-me só dizer-te que encontrei aqui dois amigos que muito estimo, o herético e o Jorge.
Melhor encontro não poderia ter.

Tem um bom fim de semana!

Beijinhosssss

10:56 AM  
Blogger Jorge P. Guedes said...

Peço desculpa de voltar a escrever mas, chegado cá, lembrei-me dos inúmeros métodos "muito modernos e recomendados nos mais renomados compêndios sobre métodos de ensino da leitura".
O método mais eficaz, rápido e indutor doa caopacidade de raciocínio de uma criança ainda é, e creio qye será sempre, o velho b+a= ba, b+e=be... pelo qual aprendo há 50 anos e pelo qual ensinei o meu filho aler, com 4 anos, quando ia com ele à rua e me ia perguntando que letras eram aquelas nas matrículas dos automóveis. E creia-me, foi mesmo eficiente a rápido esse caminho!

Um abraço renovado no mesmo escrito.
Jorge P.G.

3:09 PM  
Blogger com senso said...

É um texto desarmante de simplicidade e beleza.
Consegui ver o Nichita... a coleguinha brasileira, a escola... e a alegria de se ser criança com uma professora excepcional.
São textos destes que me dão a certeza de que a esperança vale a pena.
Obrigado.

8:58 PM  
Blogger Mar Arável said...

FAZER CAMINHO

BELO

10:06 PM  
Blogger augustoM said...

Olá Leonor
Presumo que os moldavos são eslavos, porque estes têm uma facilidade para as línguas latinas, em especial o português, de ficar de boca aberta. Conseguem articular melhor que ninguém os nossos ditongos. O teu aluno em pouco tempo, meses, vai falar correctamente o português, verás.
Um beijo. Augusto

10:40 PM  
Blogger batista said...

"Nichita que brinca com eles diz-me adeus e ri-se. Está contente na escola."

... e eu, Amiga, verdadeiramente, sempre contente por te ler, rss!!!

um abraço fraterno e saudoso.

12:19 PM  
Blogger éme. said...

Que lindo!
:)
|Posso deixar um desabafo? é que eu trabalho na Universidade... e este ano tenho o 1º ano comigo... porque sabe tão bem esta tarefa da Escola (as aulas, as coisas com a "miudagem") e o resto todo custa tanto?|

Parabéns sempre renovados pelos contos breves e belos aqui o "Improviso"... Sabe-me tão bem chegar aqui e parar um bocadinho de correr para respirar mais fundo!

7:32 PM  
Blogger augustoM said...

Tudo que começa, tem um fim, mesmo que o nascimento seja dos deuses, o fim aproxima-se, o tempo está a esgotar-se, ficará a saudade, de tudo que foi.
Um beijo. Augusto

1:48 PM  
Blogger lena said...

e eu encantada a reler-te

pela saudade, pelo Nichita, por todos os seus coleguinhas e especialmente de ti que tanto dás

beijinhos amiga

abraço-te com carinho, com amizade e com tanta ternura e admiração

lena

11:02 PM  
Blogger Isabel Victor said...

Este teu diário prende ... emociona.

Veio-me à ideia "O Diário" do Sebastião (da Gama, claro !)


...


Bj* Ilustre professora ! iv

9:07 PM  
Blogger APC said...

Opáaaa, que lindura!!! :-)
Se vem aprendendo a estar contente, já vem aprendendo muito!

E tu, ensinando-nos tanto!!!

Certo dia, entrevistaram para a TV um menino de um qualquer país de leste, que tinha tido uma integração escolar magnífica. Já não me lembro qual foi a pergunta, mas ele referiu que por cá havia alunos que se gabavam de serem uns baldas e riam do facto de terem negativas, como se isso os fizesse mais populares; e que para ele(s) isso era impensável, vergonhoso!

... A língua é só a língua. A cultura é a cultura!

Um grande abraço, Prof!

5:03 AM  

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