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Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o Resto. Reinaldo Ferreira

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Dizem que sou como o sol mas com nuvens como na Cornualha

Thursday, March 06, 2008

Foi sem querer

Quando escrevo TPC no quadro de ardósia preta anuncio também o fim da aula. Ou quase o fim da aula pois os últimos quinze minutos são dedicados ao desenho livre.
O desenho livre para os alunos do 1º ano do 1º ciclo é uma espécie de grito à liberdade. Não gostam de ter um tema e já descobri porquê: no desenho livre desenham o que sabem como sabem. No tema sugerido pela professora ocorre a frustração de não saber desenhar o que se pede tal como a coisa é.
Dou uma ajuda no quadro, dizendo que não sei desenhar. É verdade. Eles animam-me: está giro. E copiam.

Em compensação, os alunos do 3º já não gostam muito do desenho livre. Será porque o conhecimento da escrita vai substituindo, aos poucos, a expressão iconográfica, a única possível quando não se sabe escrever?

Fazer desenho significa que começou a feira. Na hora dedicada à expressão plástica os alunos ficam mais descontraídos e trocam entre si impressões, algumas vezes acerca do trabalho que estão a fazer, mas outras vezes falam de assuntos de casa. Mesmo que a professora diga que se deve falar baixo, acaba sempre por se instalar alguma balbúrdia.
Fazer desenho é também a altura de trocar afectos através do empréstimo de canetas e lápis. O cor de pele é o mais cobiçado. Apesar de todos possuírem canetas, as do vizinho são sempre mais bonitas e pintam sempre melhor.

Durante a elaboração de um desenho, o Francisco e a Maria, divertiam-se a juntar sílabas.
- Mala, mela, mila, mola mula. – disse a Maria
- Mila é o nome da minha mãe. – disse o Francisco. – Agora sou eu. Fala, fela, fila, fola, fula,
- Pata, peta, pita, pota, puta. – a Maria põe a mão na boca aflita.

Eu escrevia os sumários mas estava a ver e a ouvir tudo. Fingi que não ouvi mas senti o olhar da Maria na minha direcção. Logo depois era ela que estava junto de mim com os olhos rasados de lágrimas.

- O que foi? – perguntei-lhe, continuando a escrever no Livro de Ponto.
- Professora… eu estava a brincar com o Francisco às sílabas e disse uma asneira sem querer.
- Que asneira? – desta vez olhei para ela.
E a Maria repetiu a asneira muito baixinho em que se percebia só o movimento dos lábios.
- Maria, foi sem querer. Estás a aprender a escrever as palavras. Ainda vais conhecer mais. Há palavras boas e más. Depois também aprendes a separá-las. Agora vai arrumar.

Leonoreta

16 Comments:

Blogger Manuel Veiga said...

... e assim se "arrumam", com sabedoria, as saudáveis irreverências.

gostei.

9:50 PM  
Blogger H. Sousa said...

Viva, Leonor!
Belas crónicas.
Bem, o teu conto «Onde se meteu a lua» já faz parte do livro do concurso, onde queres que o ponha?
Beijos

12:51 PM  
Blogger mixtu said...

yayay
queixinhas...
yayaya
e assim te divertes...
educar é divertir...

abrazo serrano

10:16 PM  
Blogger Zé-Viajante said...

Dá-me para pensar que, com professoras assim, como é possivel esta guerra imensa que se desenha ?
Um bem haja, Leonor.

PS. E o mês de Maio já não está tão longe...

1:45 PM  
Blogger Isamar said...

Leonor, deixa-me dar-te um beijinho grande e um abraço apertado. Foste talhada para ensinar. Que essa seiva que te alimenta nunca ta consigam cortar. As lágrimas correm-me porque tu escreves a quente a vida do dia a dia. Um dia, se pudesses, serias professora da minha neta.Estamos tão longe!

Beijinhossssss mil

3:49 PM  
Blogger saltapocinhas said...

sempre a aprender!
vou adoptar o teu sistema do desenho à hora da saída... sempre dá para adiantar o sumário (que a ministra não nos ouça, essa agora, onde é que já se viu desenhar na escola?? aprender a ler é que é!!)

sou parecida contigo:também fico a cuscar as conversas deles... e o que aprendemos nessas alturas!!

4:24 PM  
Blogger joão marinheiro said...

O tamanho do mundo visto pelas criançãs.
Abraço daqui junto ao mar.

11:38 PM  
Anonymous Anonymous said...

Excelente post, onde relatas com mestria mais um excerto de um diálogo altamente pedagógico!

Como sempre, Leonor, foi um prazer ler-te!

Bjs

11:56 PM  
Blogger Mocho Falante said...

Mais uma história cheia de amor como só tu poderias ser a autora.

Linnndo

beijocas

11:12 PM  
Blogger Mocho Falante said...

Temos professores assim como tu e insistem a trata-los com pouca dignidade caramba que injustiça

beijos outra vez

11:13 PM  
Blogger Fragmentos Betty Martins said...

querida________Leonor



lá me perco eu!!!


nestas tuas histórias. autênticas______como só______tU!!!



___Fazer desenho significa que começou a feira._____...








beijO c/ carinhO

3:48 PM  
Blogger Daniel Aladiah said...

Querida Leonor
Não deixes de escrever um livro com as tuas histórias. Será de leitura obrigatória na faculdade!
Um beijo
Daniel

12:35 PM  
Blogger mixtu said...

... eu ficava descontraído no desenho se fosse tema livre

abrazo serrano

2:11 PM  
Anonymous Anonymous said...

Leonor: Tenho andado bastante ausente, nem tudo na Vida corre tão bem como desejamos... mas não quero deixar de agradecer a visita ao meu blog no meu último post publicado (Dia dos Namorados), desejar uma boa semana e, desde já, os votos sinceros de uma Santa e Feliz Páscoa.
Beijinhos.

11:28 PM  
Blogger augustoM said...

Leonor, a sábia cronista da nossa escola. “Agora vai arrumar”, terás tempo de sobra para separar as palavras boas das más. Aproveita bem a tua ingenuidade, que uma vez perdida nunca mais a acharás.
Um beijo. Augusto

1:27 PM  
Blogger batista said...

És de uma sensibilidade e respeito aos outros que chega a me emocionar, Amiga!

11:06 AM  

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